OPINIÃO

Dioclécio Campos Júnior é professor emérito da Universidade de Brasília, doutor em Pediatria e membro titular da Academia Brasileira de Pediatria.

 

 

Dioclécio Campos Junior

 

As notícias que circulam ampla e intensamente pelo mundo revelam a expansão de um cenário degradante que vai tomando conta da sociedade humana. A pobreza não desaparece. Perpetua-se a desigualdade. Preconceitos e segregações multiplicam-se a céu aberto. Agressões, as mais diversas, passam a caracterizar o cotidiano das pessoas. Trabalho escravo prospera nas versões modernas de exploração da mão de obra de gente simples e humilde.

 

A violência, horrendo sintoma da crueldade, é traço marcante do perfil comportamental que banaliza o desrespeito ao próximo, convivendo com o assassinato como prática rotineira. A mulher segue vítima de tenebrosas humilhações que muitas vezes culminam no estupro, um dos mais frequentes abusos perpetrados pelo homem. Crianças nascem bem menos nos dias de hoje. Crescem no abandono, distantes da atmosfera de afeto e aconchego familiar, indispensável à formação de sua personalidade. Desde a gestação, seus direitos essenciais lhe são negados.

 

Prevalecem terríveis omissões, negligências e abusos que dilapidam a existência de uma nova criatura vinda ao mundo não por decisão pessoal. Adolescentes atravessam etapa tão difícil da vida sem o necessário apoio social que lhes dê a sólida sustentação moral e ética sem a qual não se pode falar de cidadania, um sonho da espécie humana bem civilizada. Os idosos arrastam-se pesadamente num dia a dia que ignora seu passado construtivo, a missão cumprida com denodo e a sobrevivência marcada por amargas penúrias.

 

Torna-se, então, claramente perceptível que o elemento ao qual se atribui o menor valor na sociedade é o próprio ser humano. Tudo o mais é feito, planejado, produzido e propagado pelas elites dominantes para explorá-lo em todos os sentidos. A população passa a ser uma engrenagem, manuseada para manter em movimento incessante a poderosa máquina do consumismo. O único índice que diferencia os indivíduos na sociedade moderna é o perfil de consumidor alcançado por cada um. A labuta diária, a que a maioria dos cidadãos está condenada, é a fonte do combustível que alimenta o modelo econômico do capitalismo consumista.

 

Reduz-se o tempo disponível para o importante exercício dos atos de pensar, refletir, criticar e filosofar em busca da melhor qualidade de vida no Planeta. O padrão dos espaços urbanos despenca. A poluição ambiental desqualifica os redutos saudáveis em que a existência humana poderia ser desfrutada em outra versão. O adensamento populacional é assustador. O número de habitantes por quilômetro quadrado de cada cidade ultrapassa o limite da sensatez. A invasão urbana promovida pela indústria automobilística desgoverna a dinâmica do deslocamento coletivo saudável e seguro. Os megaespetáculos proliferam com ruído ensurdecedor, em bairros residenciais, num grave desrespeito social em benefício do consumismo. Os animais, ditos domésticos, passaram a ser confinados em casas e apartamentos, numa elevada densidade demográfica canina. As notas musicais da cidade de hoje são gritos e berros, latidos e batuques, buzinas e alarmes.

 

No contexto mundial, a guerra é imutável. Os bombardeios multiplicam-se em grande número de países. Atos bélicos, terroristas pela própria natureza, disseminam o poder destruidor e genocida das potências que se sucedem ao longo de toda a história da humanidade. A tecnologia do vandalismo avassalador configura-se como indício da criatividade bombástica que projeta a trajetória do fim da espécie no Planeta.

 

A educação das novas gerações carece das virtudes humanistas e pacifistas que devem inspirar o intelecto das pessoas em formação. Confunde-se educar com escolarizar, desprezando-se a perspectiva de construção mental, espiritual, filosófica, artística e multicultural, a partir de ambientes sociais que acolham e valorizem as novas criaturas, motivando-as por meio da conduta exemplar dos adultos.

 

Não há dúvida de que a sociedade humana perdeu o rumo. Não se delineiam novas tendências nem caminhos originais no horizonte à sua frente. O modelo econômico em vigor vem sendo e será preservado, a qualquer preço, como uma modalidade ditatorial eivada de sutilezas que escondem seus propósitos. O grande escritor francês de origem árabe Amin Maalouf definiu muito bem a gênese desse dantesco quadro, atualmente vivido em todas as paragens do Planeta. "Entramos no novo século sem bússola", comentou. Estamos, assim, completamente desnorteados. Se não vislumbrarmos um norte luminoso como sábio destino para as novas gerações, a humanidade já era.

 

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Publicado originalmente no Correio Braziliense em 26/5/2017.

 

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