OPINIÃO

Thereza Negrão é professora aposentada do Departamento de História da Universidade de Brasília, onde foi condecorada com o Mérito  Universitário. Graduada em Jornalismo pela Cásper Líbero e Ciências Sociais pela PUC/SP. Mestra em História Econômica e Doutora em Ciências da Comunicação pela USP.

Thereza Negrão

Mostra de Cinema Brasileiro – Tânia Montoro (Espanha)

“Qualquer um é capaz de fazer isso, uma vez que saiba como”

Lewis Carroll

 

Lúdica e bem humorada, a epígrafe acima, fragmento de “documento imaginário” lido em algum lugar alhures, nos interpela pela fina ironia, marca da inventividade de Carroll, cuja obra secular e sempre atual seduz legiões de leitores, dentre os quais me incluo.

 

Aqui, por exemplo, cujo foco é a Mostra de Cinema Tânia Montoro, realizada em Barcelona, entre 27/4 e 8/6, quase que naturalmente me peguei revisitando as tantas atividades as quais se dedica essa mulher incrível que é Tânia Montoro. Sempre a mesma coerência, sempre múltiplos afazeres, sempre um renovado e irrenunciável compromisso com práticas cidadãs, postura incansavelmente pautando um encontro com a vida, com a desenvoltura de quem “é capaz de fazer isso, uma vez que sabe como”. Cá com meus botões, fico pensando, fácil não é, mesmo!

 

Tantos atributos por certo sugeriram e legitimam a homenagem realizada em Barcelona, iniciativa conjunta da Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha (APEC), Centro Cultural do Brasil, apoio do Consulado Geral do Brasil, em Barcelona, e da Escola Oficial de Idiomas Drassanes.

 

Na Mostra apresentada, no conjunto dos cinco filmes selecionados, em cada um deles, ao seu modo, observo sintonias quanto à intenção de cenarizar expressões plurais da cultura brasileira  e vetores identitários que a atravessam em modulações plurais. Capturadas pela competência e sensibilidade de uma plêiade de diretores apaixonados pela arte cinematográfica, a Mostra apresentou: Narradores de Javé (Eliane Café) – Que horas ela volta? (Ana Muylaert) – Flores raras (Bruno Barreto) – Aquarios (Kleber Mendonça Filho) – Hollywood no cerrado (Armando Bulcão e Tania Montoro).

 

Não seria o caso, e sequer haveria espaço, para uma pretensão de resenhar tais filmes. Antes interessa destacar, em meio às urdiduras distintas que tecem enredos peculiares, aspectos que, especialmente, chamam a atenção. De um lado, a feliz escolha dos filmes, cujas motivações parecem dialogar com o perfil da homenageada. De outro, a seleção harmônica das obras, um conjunto que desvela sintonias dos autores  quanto ao modo de ver e fazer cinema. Em breve sobrevoo, penso no papel da memória do lugar, eixo norteador de “Narradores de Javé”. “Que horas ela volta”, repõe permanências históricas na relação patrões-domésticas entrecruzando com questões identitárias e de gênero. No premiado “Flores raras” o romance entre duas mulheres motiva densa reflexão sobre a afetividade, amor e meandros suscitados por questões de gênero. No quarto filme apresentado, a saga de uma mulher madura, cujo presente embebido de memória afetiva cenariza um cotidiano pleno de desafios é o fio condutor da narrativa de Aquarius – um delirante frisson imobiliário se depara com a determinação de uma mulher, cuja percepção do seu lugar no mundo  move ações e reações que tecem a narrativa fílmica. “Hollywood no Cerrado” encerra a Mostra deste ano com especial brilho, não fosse Tânia Montoro uma das diretoras ao lado de Armando Bulcão. Em entrevista recente para a Adunb (8/junho) Tânia fala sobre o filme e a intensa pesquisa envolvendo historiadores que se debruçaram sobre esta espécie de “pré-história de Brasília”. Tempos em que Anápolis era cenário efervescente onde viveram mulheres como Janet Gaynor, Mary Martin e Joan Lowell, renomadas atrizes de Hollywood. Nas palavras de Tânia, interessava “mostrar como essas mulheres aventureiras, enquanto imigrantes, enquanto atrizes, enquanto pessoas (grifo meu), trouxeram a cultura para o Centro-Oeste brasileiro. Enfim, espécie de filme-almanaque, mosaico onde “o fictício perfura o real” para ficarmos com Mafessoli, ou, se bem entendo, a sedução exercida pela arte cinematográfica.

 

O sentimento da cidadania é lembrado por Bogolometz em interlocução com Winnicot em reflexão que nos leva a convir, que o gesto de cidadania estaria na capacidade de perceber a sorte alheia “como algo que me concerne”. Ora, este pendor, esta vocação, esta disponibilidade, no caso de Tânia, são atributos que se engendram desde uma experiência que remonta à militância estudantil, ambiência de interesse por causas sociais e dentre elas a própria identificação com o feminismo, postura que se engaja ao combate às injustiças, viés, aliás abordado por Joana Maria Pedro em sua pesquisa intitulada os Sentimentos do Feminismo.

 

Concluindo, uma biografia de Tânia Montoro, por certo será pontuada de momentos e sentimentos nos quais se evidenciará  a capacidade de “perceber a sorte alheia como algo que lhe concerne”. Daí a justeza da homenagem a uma pessoa cujo belo encontro com a vida é também o encontro com práticas cidadãs. Bravo! Parabéns pela homenagem!

 

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