OPINIÃO

Maria Fátima de Sousa é professora do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP), da mesma universidade, onde implantou a Unidade de Estudos e Pesquisas em Saúde da Família (UEPSF). Graduada em Enfermagem, especialista em Saúde Coletiva, mestre em Ciências Sociais, todas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutora em Ciências da Saúde pela UnB. É vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Atua na área da Saúde Coletiva, nos temas: políticas públicas de saúde, modelos de atenção à saúde e gestão de sistemas locais de saúde.

Maria Fátima de Sousa1

 

Na educação do século 21, pensamos nós que um debate sobre Escola Sem Partido, ou algo do gênero, nunca mais aconteceria. Não depois de termos aprendido com os educadores do Movimento Escola Nova, batizada também de Escola Ativa ou Escola Progressiva, o valor de uma escola educativa, não apenas instrutiva. Ou seja, educar para a e pela cidadania.

 

Não depois de termos aprendido com um jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro, Anísio Teixeira, em companhia de Cecília Meirelles, e tantos outros signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, datada de 1932, a concepção teórica de uma educação integral. Nela, os sujeitos são compreendidos, livremente, em suas emoções, subjetividades, desejos, inteligibilidades e sociabilidades, não somente a cognição.

 

Não depois de termos aprendido com o patrono da educação brasileira, Paulo Freire, educador estudado em todo o mundo, o valor da pedagogia do oprimido, da autonomia, da tolerância, da indignação, da esperança, e, sobretudo, da importância da educação como um ato político. Um ato de ler o mundo em seus diversos contextos. Assim, não há como educar sem pensar em liberdade.

 

Não depois de termos aprendido com o artigo 206 da Constituição Federal os princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber em ambientes plurais de ideias e de concepções pedagógicas. Se é verdade que aprendemos tudo isso e mais, por que essa discussão em pleno século 21 de Escola Sem Partido? Pensávamos que ideias dessa natureza não faziam parte do vocabulário atual, se não de um livro, cujas páginas jamais gostaríamos de reler. Afinal, muitos tombaram para que professores, funcionários e alunos tivessem liberdade de expressar, de forma crítica, seus pensamentos e ideias.

 

Nesse sentido, o Projeto de Lei nº 7.180, de 2014, hoje em debate numa Comissão Especial da Câmara Federal, nada mais quer senão a criminalização dos professores e dos profissionais da educação. E, para isso, cria um tipo penal denominado assédio ideológico, que nada mais é do que o professor doutrinar o aluno para suas próprias convicções. Eles desejam uma escola bancária, onde, segundo Paulo Freire, o aluno é um caixa vazio, e o professor, de forma neutra, deposita conteúdo linear, sem debate de ideias inteligentes, sem afeto, sem beleza. Isso, sim, é assédio ideológico.

 

Sabemos todos que, em uma sociedade plural, livre e democrática, não há espaço para neutralidade na escola, muito menos na vida. Assim, cabe ao professor acolher, cuidar e sentir a diversidade dos alunos, respeitando-os em seus direitos de agir e pensar. Eles são diferentes e trazem essas diferenças para sala de aula. E nesse lugar, há, sim, espaço para o contraditório e a tolerância das múltiplas visões de mundo. Visões que podem circular entre os valores religiosos, culturais, de orientação sexual, racial, étnicos e políticos. Lidar com tudo isso não é tarefa fácil para um professor.

 

Não é fácil porque, na educação problematizadora e emancipatória, também não cabe doutrinação. Doutrinar é desrespeitar a opinião dos estudantes, é não considerar, nem valorizar diferentes conceitos que aparecem em sala de aula em decorrência da afirmação do professor. Impedir visões diferentes entre os estudantes, e destes com o professor, fora ou dentro da sala de aula, isto, sim, é doutrinar. Doutrinar é não permitir a divergência. Afinal, não compreendo a ideia de que alunos são passivos aos seus professores.

 

Passiva é a sociedade, cada vez mais conservadora, ao deixar o Congresso Nacional discutir uma matéria pouca civilizatória, em vez de se preocupar com as Escolas Sem Professor, esse, cada vez mais sem condições de trabalho e de salário digno. Profissional que tem vivido às voltas com a violência institucional, depressão, perdas vocais, medicalização e alto índice de suicídio, isso, sim, é muito ruim e grave.

 

Grave também porque distantes estão os poderes centrais da República. Incapazes são de apresentar à sociedade contemporânea outros e novos modelos de educação e formação permanentes para nossos jovens, em que sejam cidadãos criativos, críticos, éticos, livres e comprometidos, essencialmente, com os destinos do país.

 

Um país que não tolere lei da mordaça; que não confunda a cabeça do povo com informação que é possível ensinar sem ideologia; que abaixe o tom policialesco dos fundamentalistas, das mais diversas ordens; que não persiga nem criminalize a prática docente. E, principalmente, que respeite nossas cátedras. Elas existem para ajudar o Brasil a edificar escolas em território aberto ao conhecimento e livre de censura, essa Nunca Mais. Na educação brasileira, não cabem tribunais pedagógicos.

 

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¹Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Paraíba

Publicado originalmente no Correio Braziliense em 22/1/2019.

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