OPINIÃO

Camila Condilo é doutora em Estudos Clássicos pela Universidade de Cambridge. Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília na área de História Antiga e ativista da causa animal. Líder do projeto Animalia: Grupo de Estudos sobre as Relações entre Humanos e Animais na Antiguidade.

 

Camila Condilo

 

Gostaria de aproveitar minha posição privilegiada como membro da espécie humana para fazer algumas considerações em nome dos animais, já que estes não são capazes de falar por si próprios – pelo menos não no tipo de linguagem que é característica de nossa espécie.

 

Um dos argumentos principais utilizados para distinguir animais humanos de não humanos, que também acaba por legitimar uma suposta superioridade dos primeiros sobre os últimos, é a capacidade dos seres humanos de produzir cultura. Essa cultura é completamente permeada por nossas relações com outros animais através da convivência com pets em nossos lares, na nossa comida, nos produtos cosméticos, farmacêuticos e de limpeza que utilizamos no dia a dia (uma vez que estes são testados em animais), no nosso entretenimento (ex.: passeios no zoológico, eventos de rodeio, visitas a parques aquáticos e circos), nas artes e na literatura... Isso apenas para citar alguns exemplos. Perceba-se que nesse sistema de significações os animais são significados pela instrumentalização que nós, humanos, fazemos deles, isto é, nós atribuímos sentido a essas espécies a partir da serventia que elas têm para nós: transporte, alimentação, vestuário etc. Mas o que seria o animal não humano fora desse sistema de significações? Os humanos continuariam sendo a espécie animal dominante? Os pássaros, por exemplo, não falam e não produzem cultura, mas eles podem voar e isso é uma coisa incrível que os humanos não podem fazer por conta própria. Isso não faria dos pássaros, animais não humanos, superiores aos animais humanos nesse quesito? Diferentes espécies têm diferentes habilidades e limitações e isso não faz delas melhores nem piores, apenas diferentes.

 

Crenças em superioridade natural ou cultural variadas historicamente serviram e ainda servem para justificar a violação, subjugação e exploração de numerosos grupos considerados inferiores por parte daqueles que se arrogam tal prerrogativa, o que fica notadamente evidente nos muitos casos de racismo, machismo e homofobia, por exemplo. E o mesmo se aplica ao caso dos animais não humanos através do especismo. O especismo nada mais é do que um sistema de crenças e práticas no qual os humanos acreditam que são superiores aos outros animais e que por isso gozam da legitimidade para dominá-los e explorá-los. Outra dimensão do especismo é que, justamente por causa dessa posição privilegiada, humanos têm o poder de decidir quais animais não humanos são dignos de cuidado e respeito e quais não são. Pensar diferenças entre espécies em termos de superioridade ou inferioridade de qualquer tipo é pouco produtivo por resultar em abordagens hierarquizantes e discriminatórias que servem apenas para validar e perpetuar lógicas de pensamento dominadoras, opressivas e violentas.

 

De outra perspectiva, poderíamos igualmente dizer que o que diferencia animais humanos e não humanos não é a capacidade de falar e produzir cultura, mas a capacidade de destruição do meio ambiente, de outros animais e mesmo de sua própria espécie. Segundo dados do IBGE, 5.5 bilhões de aves, 37 milhões de porcos e 33 milhões da cabeças de gado foram abatidas em 2014 – se animais marinhos fossem incluídos aqui o número de vidas ceifadas seria muito superior. Para além das questões éticas no tratamento brutal dispensado para com esses animais de forma desnecessária – dado que esse tipo de produção é muito pouco eficaz quando comparado com o consumo direto de vegetais e dada a existência, na atualidade, de uma variedade de sabores, cores e texturas muito próximas dos produtos de origem animal sem sê-lo –, há também sérias implicações ambientais como a escassez de água, emissão de gases de efeito estufa, poluição, crise nos oceanos, riscos à saúde pública, destruição de ecossistemas inteiros. Por exemplo, no caso da Floresta Amazônica, que abriga a maior diversidade biológica do mundo e 20% de toda a água doce da Terra, 70% de sua área desmatada servem de pasto, sendo que o restante da terra é utilizado para o cultivo de grãos que são direcionados para produção de ração para gado. Tal produção, além de todos os problemas já elencados, tem tido um impacto direto no nosso cotidiano através de um aumento considerável da temperatura. (Dados extraídos de C. Schuck & R. Ribeiro (2018) Comendo o planeta. Impactos ambientais da criação e consumo de animais, publicado pela SVB)

 

Contudo, se a capacidade de destruição é uma marca proeminente de nossa cultura, outra marca importante é a capacidade dos humanos de reinventarem o mundo e a si mesmos. Nesse sentido, é hora de nós começarmos a pensar criticamente sobre os efeitos nocivos que o antropocentrismo tem causado no planeta como um todo. E isso implica uma mudança de atitude e de mentalidade – inclusive na forma do homem produzir e consumir cultura –, de maneira que passemos a enfatizar valores mais positivos, como compaixão, empatia, solidariedade e respeito para com todos, aqui incluídos os animais não humanos. Afinal, humanos ou não, somos todos iguais na capacidade de sentir dor e no desejo de querer viver uma vida plena. Em outras palavras, todas as espécies (não só a humana) anseiam e merecem viver em um ambiente limpo e equilibrado, com integridade física e no pleno gozo dos comportamentos e habilidades que lhes são próprios.

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