OPINIÃO

Cristiane de Assis Portela é professora do Departamento de História e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade de Brasília. Faz parte do grupo de pesquisa Cauim: interculturalidade e epistemologias contra-hegemônicas e do LABEH- Laboratório de Ensino de História, ambos da UnB. É coordenadora do projeto Outras Brasílias — ensino de história do Distrito Federal a partir de fontes documentais.

Cristiane Portela

 

Momentos dramáticos como este revelam as disparidades sociais e a assimetria de poderes. Essas, reiteradas historicamente pela ausência ou ineficácia de políticas públicas que contemplem as especificidades das periferias urbanas. É significativo que os índices de letalidade da covid-19 sejam muito maiores nas cidades de periferia do DF do que nos bairros nobres do Plano Piloto e em outras localidades, e isso não é um acaso. Não há dúvida de que nessas seis décadas de existência da nova capital, doenças, epidemias e mortes geraram uma memória histórica, e estas enfermidades acometeram de modo distinto pessoas de classes mais favorecidas e a classe trabalhadora precarizada.  Desde os canteiros de obras da construção da nova capital em fins da década de 1950, os trabalhadores do Distrito Federal enfrentavam as doenças endêmicas da região, mas, também, graves ciclos de epidemias, a exemplo daquelas de sarampo, varicela, varíola, tuberculose e meningite.



Essa última teve auge em 1974 e, em plena ditadura militar, o governo buscou silenciar ao máximo as informações de contágio, facilitando a propagação e atrasando medidas para o seu combate. Relatos de moradores daquela época trazem, por exemplo, indícios dos efeitos do contágio em Ceilândia, uma localidade que se estruturava precariamente em meio a essa epidemia, que surgiu em 1971. Crianças, homens e mulheres adoeciam e morriam sem que ao menos soubessem do que se tratava.  Não foi diferente em muitas localidades do DF. Naquele momento, como hoje, as precárias condições de moradia, o trabalho precarizado, a escassez no abastecimento regular de água e a falta de tratamento de esgoto são elementos que agravam a vulnerabilidade dessas populações.



Nesse sentido, podemos afirmar que se trata de situação em que, historicamente, percebemos mais permanências do que transformações.  Portanto, podemos pensar que a pandemia, associada ao descaso social, é uma "novidade menor" para quem vive o dia a dia nas periferias. E tudo isso agrava-se em um momento em que, politicamente, há um crescente discurso autoritário e negacionista da ciência, que confunde as pessoas e gera dispersão de informações entre os moradores, o que corrobora a letalidade nas periferias urbanas.

 

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Publicado originalmente no Correio Braziliense em 5/7/2020

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