OPINIÃO

Benedetta Bisol é professora adjunta de Filosofia da Educação do Departamento de Teoria e Fundamentos (Faculdade de Educação, UnB, Brasília). Possui láurea em Filosofia (Università degli Studi di Padova, Itália - 1998), doutorado em Filosofia (Ludwig-Maximilians-Universität München, Alemanha, 2008) e habilitação para a docência de filosofia moral (abilitazione scientifica nazionale, Itália - 2014). bisol@unb.br.

Benedetta Bisol

 

Em um artigo recente, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, apresentei uma reflexão em torno do racismo, tomando como referência teórica e fonte de inspiração um breve ensaio do filósofo francês Emmanuel Levinas, intitulado Algumas reflexões acerca do hitlerismo. O texto de Levinas foi publicado originalmente em 1934, pouco meses antes da nomeação de Adolf Hitler a Reichskanzler, na Alemanha. Liderado por Hitler, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães ganhara as eleições de forma legítima, embora já tivessem sido denunciadas irregularidades no andamento do processo eleitoral. O texto levinasiano não é, contudo, uma análise das conjunturas, mas sim uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos da ideologia nacional-socialista. Giorgio Agamben, autor do prefácio da tradução italiana, o considera “a única tentativa da filosofia do século XX que conseguiu dar conta do evento político decisivo do século: o nazismo” (AGAMBEN, 1996 – tradução minha).

De acordo com Levinas, o cerne teórico do hitlerismo consiste em um modo peculiar de exaltação da dimensão corpórea do ser humano, cuja natureza se determina como uma espécie de acorrentamento dos indivíduos à própria corporeidade, entendida como um vínculo sem resolução histórica, determinado pela herança de sangue. A centralidade do sentimento do corpo, percebido como sentimento elementar, revelador de potências e impulsos primitivos, toma o lugar, no hitlerismo, do desejo e da possibilidade de libertação dos vínculos do biológico, disposição teórico-prática central na tradição do pensamento ocidental, a partir das suas raízes cristã e judaica.

No artigo mostrei quanto o antissemitismo de matriz nacional-socialista reaproveita um modelo conceitual de raça que se desenvolve no começo da modernidade na Península Ibérica, concretizando-se no programa de perseguição e expulsão dos judeus pelo Tribunal da Inquisição espanhola. Examinei em seguida em que medida o mito da democracia racial no Brasil apresenta analogias com o discurso racista europeu. Como Queiroz Júnior (1999, p. 10), no prefácio a um texto de Munanga, a mestiçagem “serve bem para projetar o mulato, dissimulando o preto e ampliando arbitrariamente o branco”.

Abordei, por fim, o problema da construção teórica do pensamento antirracista brasileiro contemporâneo, defendendo a tese que o hitlerismo hoje, fenômeno genuinamente midiático, manifesta-se no corpo branco como ilusão da liberdade e, no negro, como condenação a renunciar a sua corporeidade para participar, de modo sempre deficiente, de uma “igualdade” branca. Por outro lado, questionei se a ênfase excessiva na identidade negra, em vez de contribuir para sua justa valorização, não pode se tornar um instrumento de discriminação, que acaba operando segundo os mecanismos racistas.

Para compreender o racismo e elaborar estratégias de luta antirracista eficazes, trata-se de ter em vista que a reconfiguração da estrutura social desencadeia processos em que igualdade e diferença deveriam ser constantemente negociadas por todos, e não apenas por uma parte da sociedade. O tensionamento entre corpo e liberdade é, do ponto de vista filosófico, o núcleo conceitual que permite pensar essa negociação.

 

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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Introduzione. In: LEVINAS, E. Alcune riflessioni sulla filosofia dell’hitlerismo. Macerata: Quodlibet, 1996

QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Prefácio. In: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. (Identidade Brasileira)

 

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Publicado originalmente em Revista do Instituto de Estudos Brasileiros em agosto de 2020

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