OPINIÃO

Alexandre Simões Pilati é professor associado de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, doutor em Literatura pela UnB (2007). É pesquisador e professor na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, poesia.

Alexandre Pilati

 

A Universidade de Brasília faz 54 anos em 2016. Pedem-me um texto que a homenageie nesta data tão importante para todos aqueles que, como eu, têm dedicado a vida à educação, à pesquisa e à ação de tornar realidade o desejo de que o conhecimento se expanda e se aprofunde na sociedade brasileira, tornando-a mais efetivamente justa. Como as homenagens correm o risco de diluírem-se no protocolo, dissolvendo-se em oficialismo, gostaria de usar algumas prerrogativas de minha formação na área dos Estudos Literários e contar algumas histórias da UnB de um ponto de vista bastante subjetivo, usando minha memória para reviver momentos e companheiros como Honestino Guimarães e Darcy Ribeiro.

 

Passei, até este 2016, 22 anos dentro da UnB, desde que me matriculei no curso de Letras –  Português, no ano de 1994. Entre os momentos especiais que vivi na UnB está a cerimônia de outorga do título de Doutor Honoris Causa ao grande pensador brasileiro, e fundador da UnB, Darcy Ribeiro, ocorrida no teatro de arena lotado. A juventude ouvia atenta. Os professores emocionados aplaudiam o grande mestre que ensaiava já suas últimas lições devido à debilitação física evidente. A partir daquela data, o campus levaria justamente o nome de seu idealizador. Eu era apenas um estudante de primeiro ano de graduação e sentia que a poesia política daquele momento inundava por completo as vidas de quem ouvia.

 

Darcy, naquele dia, fez uma fala emocionada e aguerrida, que ficou marcada profundamente em mim. Hoje, graças ao registro que foi feito do ato, posso recompor literalmente algumas de suas palavras que mais me impressionaram: “Haverá quem pense que a Universidade, como a matriz de reprodução das classes dirigentes da sociedade dentro de uma civilização, tem mais a ver com a prosperidade dos ricos que com o destino dos pobres. É até moda em nossos dias delegar aos automatismos da História as tarefas da redenção social, cuidando que os ricos mais enriquecidos socorrerão os pobres”.

 

Era, na verdade, como pude depois entender, uma lição a respeito da matéria concreta da democracia, que, ou se combina com a ação de justiça social, ou é apenas um formalismo a serviço dos poucos que concentram vorazmente a riqueza produzida pelo país. Fiz minha graduação, na década de 1990, em uma Universidade que ainda representava majoritariamente o que Darcy, com a razão e o coração, nomeava, em seu discurso, de “matriz de reprodução das classes dirigentes” brasileiras. Tratava-se de uma Universidade não apenas menor, mas muito menos matizada social e etnicamente do que aquela em que hoje continuo aprendendo e ensinando.

 

Com a lição de Darcy na cabeça, procurei guiar a minha atuação, primeiramente como estudante e depois como professor da UnB. Isso implicou sempre manter vigilante a consciência de que é incontornável, para a sonhada evolução igualitária da sociedade brasileira, a construção de uma Universidade radicalmente democrática, que produza pensamento crítico capaz de ir “contra os automatismos da História”. Sob essa perspectiva, uma Universidade radicalmente democrática é aquela que constrói para (e junto com) as classes populares as condições concretas necessárias para a sua conversão em sujeito da transformação histórica. A UnB que vejo hoje quando ando pelos corredores e entro em sala é um lugar muito mais plural, muito mais vivo, muito mais politizado, muito mais saudavelmente misturado, muito mais aberto ao interesse público... Esta UnB com 54 anos é, sem dúvida, mais democrática do que aquela em que me formei no correr dos anos 1990. Ainda há muito o que fazer, mas vimos significativos avanços, nos últimos tempos. E, principalmente, conseguimos garantir nossa prerrogativa essencial, que é a manutenção da UnB (e de qualquer outra Universidade Federal) como instituição pública, gratuita, de qualidade e progressivamente mais democrática.

 

Em tempos difíceis como os que vivemos em 2016, é fundamental lembrar o legado de Darcy Ribeiro. Naquele discurso emocionado de 1994, revelador por sua intensidade política, ele dizia da necessidade de criarmos novas classes dirigentes para o Brasil, através (e a partir) da vivência universitária democrática. Novas “elites”, que, para estarem à altura da necessária democracia, deveriam laborar socialmente “cheias de indignação frente à realidade sofrida do Brasil”. Essas “elites” novas precisariam ter a “cara” do país, pois assim haveria, pensava ele, a possibilidade concreta de juntos criarmos o que é historicamente novo, fugindo dos automatismos que interessam ao pensamento conservador. Darcy falava, naquela década de 90, de uma Universidade que tentava se reerguer após os tempos sombrios de ditadura militar. Era uma Universidade ainda combalida pelos golpes que sofrera do regime militar. Via-se, então, que Darcy ainda hesitava em acreditar que seu desejo de um país mais igualitário construído através da Universidade tinha forças materiais para se converter em realidade.

 

Aliás, falando em golpes sofridos pela Universidade durante o regime de exceção, quero recordar outra história vinculada à existência da UnB e às lutas que aqui se travaram contra todas as formas de retrocesso. O aluno da UnB Honestino Guimarães é um símbolo da luta democrática que sempre caracterizou a Universidade. Infelizmente, a utopia e a energia de nosso colega eternamente presente foram moídos nos porões sujos de sangue de uma ditadura das mais perversas e criminosas já vistas. Honestino foi morto, como foram mortos tantos homens e mulheres, como foram mortos tantos desejos e sonhos de liberdade e de democracia, naquela longa noite brasileira que durou vinte anos. Aquele foi um regime espúrio, que quis silenciar a Universidade brasileira e que sequer deu à família deste estudante de geologia da UnB a possibilidade de enterrar o seu corpo humanamente. Se não lhe foi possível um túmulo digno, a Universidade inteira, com sua história de resistência à opressão, a sua vida hoje renovada, seu burburinho de liberdade, seu avanço social visível, converte-se cabalmente, e cada vez mais, em um imenso monumento a Honestino e a todos aqueles que sucumbiram clamando por um país mais livre e mais democrático.

 

Nesses anos que vivi na UnB, aprendi que a Universidade é um lugar de encontros, de diálogo, de debate, de estudos e de luta política. Aprendi que ela é um lugar de radicalização da democracia, porque nos seus corredores e salas de aula fazemos paulatinamente se tornarem realidade, para além do campus, os sonhos coletivos de um país melhor e mais justo. Eu tive a sorte de ver e viver, nesses mais de vinte anos dentro da UnB, um ciclo desse processo que esperamos contínuo. É uma instituição renovada a que completa 54 anos em 2016. É também uma UnB à qual o presente, pelas voltas que o mundo dá, interpela, exigindo-lhe compromisso com os ideais de um reitor e um líder estudantil, Darcy e Honestino, que tanto influenciam os ideais dos que por aqui passam e dos que por aqui ficam.

 

Que nós, professores, alunos, funcionários e dirigentes, saibamos lidar com esse legado, atualizando-o e aprofundando-o para manter vivo o âmago político da Universidade: produzir, através do conhecimento, uma realidade nacional socialmente mais justa. Por tudo isso que vivi e que aprendi, sei que a nossa melhor homenagem neste ano à Universidade é nosso trabalho honesto, é nosso companheirismo humano, é nossa vigília atenta e, é claro, a nossa luta incansável pela democracia como contribuição vital da UnB à sociedade brasileira

 

 

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