OPINIÃO

José Geraldo de Sousa Júnior é professor da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Ceam); ex-Diretor da Faculdade de Direito e ex-reitor da UnB. Colidera o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

 

José Geraldo de Sousa Junior1

 

Em 20/5/2017, por meio de nota de pesar publicada no portal da Universidade, a Reitoria da UnB comunicou à comunidade acadêmica o falecimento, dizia a nota, “da nossa querida servidora técnica Maristela Abad”. Maristela, a nota destacava, entrou para o quadro da Universidade de Brasília aos 16 anos e, ao longo de sua trajetória, ajudou a construir a Universidade, com amor, dedicação e conhecimento técnico de alto nível. Trabalhou em vários órgãos da instituição, como a Editora, a Prefeitura do Campus e o Ceplan. Também atuou nos gabinetes de reitores. Quando faleceu, era assessora da Vice-Reitoria da Universidade.

 

Por onde passava, completava a nota, Maristela contagiava a todos, com sua alegria, espírito aguerrido, sempre pronta para ajudar e buscar soluções aos complexos problemas do cotidiano acadêmico. Sua partida prematura deixa um vazio em todos nós.

 

Não é comum essa maneira tão subjetiva, numa instituição instalada no sistema burocrático da gestão pública, de registrar o perfil de seus quadros, nas várias situações que designem o seu percurso funcional.

 

Penso que essa nota sensível, até extravagante na linguagem protocolar, tem muito a ver com o modo pelo qual, na UnB, Maristela Abad inscreveu e marcou em todos a vivacidade de uma biografia que de muitos modos atravessou o funcional-burocrático, não se deixou enquadrar no seu recorte de impessoalidade, nem perder a sua pertinência à universidade, deixando-se alienar do profundamente humano tão entranhadamente constituinte de Maristela.

 

Foi assim que a conheci nos meados dos anos 1980, então Chefe de Gabinete do Reitor Cristovam Buarque, quando ela, lotada na Reitoria, foi designada para trabalhar diretamente comigo.

 

Talvez ela já tivesse transposto o limiar dos 16 anos de quando ingressou na UnB, mas a sua jovialidade era o impulso de seu agir diligente, disposto, lealmente comprometido com a institucionalidade universitária.

 

Nessa época, lembremos, a Universidade, salvo a máquina central de processamento, o mítico Galileu, não dispunha de computadores pessoais e a internet não havia ainda se configurado no ponto com ou no ponto edu. A capacidade de operar e de estabelecer o racional próprio à burocracia, no seu melhor sentido weberiano, era atributo da inteligência e da sensibilidade, requerendo habilidades de memória e cognição para operar processos que realizassem os fins e objetivos administrativo-acadêmicos. Alguns servidores, em setores estratégicos da Universidade, exponenciaram essas habilidades, se tornando memória, arquivos vivos, referências ativas do saber fazer institucional. Maristela era uma dessas referências, já então inscrevendo em sua biografia o agregado das múltiplas funções e atribuições que exercitou e que são descritas em seu curriculum vitae e no memorial apresentado ao Conselho Universitário.

 

Penso que, entre as mais nitidamente incorporadas e estimadas em seu percurso, estão aquelas que ela realizou no âmbito das Letras, na Editora e mais reconhecidamente nas atividades de coordenação dos programas conduzidos pelo Instituto de Letras da UnB, UnB Idiomas, formidável empreendimento extensionista universitário, e Instituto Confúcio, o singular programa de cooperação internacional interinstitucional – singular porque, enquanto todos os outros programas congêneres (francês, norte-americano, italiano, espanhol) são conduzidos por organismos nacionais instalados no âmbito da sociedade civil, o Confúcio é abrigado no solo universitário, ganhando uma dimensão que o faz único, especial.

 

O que se põe em relevo na atuação institucional de Maristela deriva, a meu ver, de sua própria atenção reflexiva, no sentido de compreender, valendo-me aqui de suas palavras o que se pode constatar, “na história recente da Universidade, o avanço das suas políticas no sentido de buscar um modelo de produção e transmissão do saber científico de forma a contemplar as diversas demandas requeridas pela sociedade”. Daí que ela tenha procurado conduzir essa sua reflexão para estudos avançados no plano acadêmico, notadamente em pesquisa que desenvolveu para o Mestrado em Economia que completou na UnB em 2015. Na dissertação que defendeu, ela parte, exatamente, da preocupação, segundo ela, de que, a “condição universitária gere um espaço privilegiado para a aproximação do fazer acadêmico com as necessidades sociais”. Em seu estudo, tomando como referência a extensão universitária, ela buscou analisar e avaliar o programa com o qual tanto se envolveu, o UnB Idiomas, Programa de Extensão da Universidade de Brasília.

 

De fato, com o título Extensão universitária e sua eficácia: estudo de caso do UnB Idiomas, sob a orientação da professora Denise Imbroisi (aliás, relatora da proposta de concessão do título no Consuni), ela defendeu, em 2015, a dissertação, cujo resumo diz bem de seu compromisso e de sua capacidade de reflexão a partir de sua prática: A avaliação das ações extensionistas é um importante instrumento para a validação ou não de seus processos e resultados em relação aos objetivos das políticas instituídas. Ademais, a avaliação pode ser um instrumento fundamental para se alcançar melhores resultados e proporcionar uma melhor utilização e controle dos recursos aplicados nos Programas e Projetos extensionistas, como também fornecer aos gestores dados importantes para o desenho de políticas mais consistentes. Esta pesquisa buscou avaliar a eficácia da Extensão Universitária à luz das normas extensionistas praticadas em uma universidade federal e das Políticas de Extensão hoje praticadas no Brasil, tendo como objeto da pesquisa o UnB Idiomas, Programa de Extensão da Universidade de Brasília.

 

Uma de minhas mais nítidas satisfações no curso de meu reitorado na UnB (2008-2012) e até de indisfarçável orgulho foi formular um programa de gestão de pessoas em cujo âmbito se institucionalizou uma política de formação e de registro de contribuições dos servidores da Universidade para compartilhar a causa comum de gestão universitária.

 

Um registro exemplar dessa política tem relevo com a publicação do livro – Gestão Universitária – organizado por César Augusto Tibúrcio Silva e Nair de Aguiar Miranda, responsáveis também, pela realização do primeiro curso de pós-graduação lato sensu em Gestão Universitária, para servidores da UnB.

 

O curso e a publicação das monografias elaboradas e aprovadas pelos alunos do programa traduziram louvável iniciativa do Decanato de Gestão de Pessoas, em parceria com a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Gestão de Políticas Públicas (Face).

 

Tenho notícia que o reitorado atual da professora Márcia Abrahão não só manteve como amplificou a política de capacitação pós-graduada dos servidores e organizou novos programas de incentivo para o seu aperfeiçoamento técnico-profissional. Espero que o programa editorial tenha prosseguido, porque ele acaba estabelecendo um valioso repositório de talentos, eventualmente convocáveis para o exercício de funções de gestão universitária, ao mesmo tempo que se organiza como que um catálogo de gestão, rico em seu sumário de referências.

 

Aliás, conforme prefácio lançado no primeiro volume da publicação, deixei em relevo três dimensões analíticas presentes nessa iniciativa. A primeira delas é a que diz respeito à participação de cada pessoa, na condição de aprendiz e produtor de saber, agregando e gerando conhecimento sobre seu próprio meio. É o exercício de uma das faces daquilo que Boaventura de Sousa Santos chama “ecologia dos saberes”, para designar a produção de conhecimentos contextualizados, situados e úteis e que só podem florescer em ambientes tão próximos quanto possível das práticas de que se originam e “de um modo tal que os protagonistas da ação social sejam reconhecidos como protagonistas da criação de saber.

 

A educação é a estratégia por excelência para realizar essa autonomização do indivíduo dentro de seu campo, ou, dito de outra forma, é a chave para sua emancipação social, o primeiro passo para a refundação democrática da administração pública, e a condição para pensar o próprio Estado democrático. Nesse sentido, a UnB atua como aporte para geração de conhecimentos, atendendo às demandas de aquisição e desenvolvimento de competências por parte dos servidores.

 

A segunda dimensão é a que considera os servidores na condição de uma categoria destacada. A realização desse curso de formação caminha no sentido da valorização do ethos de todo esse segmento universitário. Por meio da especialização desses servidores pela qualificação, o seu poder de ação amplia-se e acentua-se também a sua inserção estratégica e a sua representatividade corresponsável pela gestão da Universidade a que servem.

 

A terceira, por fim, de conteúdo político, é entre as dimensões aquela a partir da qual os sujeitos atuam como representantes ou membros da instituição. Eles, os servidores, são a própria UnB. Têm papel fundamental na administração de sua estrutura e atuam, junto a toda a comunidade, como multiplicadores, difundindo os saberes e as práticas que adquirem. 

 

Maristela Abad reuniu, em sua atuação na UnB, todas essas dimensões e em todas elas soube apresentar-se com a pertinência que a tornou respeitada e admirada. Seu lugar institucional foi estabelecido, pois, com mérito e o devido reconhecimento.

 

Mas nesse reconhecimento deve incidir também uma dimensão de exemplaridade, uma história que possa indicar, na própria instituição, um modo de representar num modelo, caminhos que outros, dadas as condições adequadas, também possam trilhar.

 

Por isso, o alto significado da distinção que o Instituto de Letras propôs e que o Conselho Universitário aprovou, conforme artigo 66 do Estatuto da Universidade, ao atribuir a Maristela Abad, post-mortem, o título de Mérito Universitário, por ter se distinguido por relevantes serviços prestados à Universidade de Brasília, numa solenidade realizada, não por coincidência, num 8 de março, dia internacional de homenagem a mulher.

 

A UnB, nessas condições, carrega de elevado simbolismo a cerimônia, porque assim confirma o que ainda, nesta data, salientou a reitora Márcia Abrahão em artigo publicado no Jornal Correio Braziliense (p. 11) – Mais mulheres na ciência: um desafio de todos nós. Imprime à homenagem uma nota de afirmação do feminismo, sua luta por reconhecimento de dignidade identitária, pela construção de um lugar forte no saber fazer profissional e na pesquisa avançada acadêmica, científica, tecnológica, num movimento que, ao fim e ao cabo, conduz à emancipação de todo o social e o político, atributos plenamente reconhecidos no percurso institucional de Maristela Abad.

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Professor da Faculdade de Direito e ex-Reitor da UnB.

 

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