UnB POR ELAS

Segunda reportagem de série especial sobre mulheres conta histórias de docentes que se destacam na ciência e aborda cenário da pesquisa no país

 

Cartazes no Centro de Convivência de Mulheres, espaço formado por alunas feministas da Universidade de Brasília. Foto: Amália Gonçalves/Secom UnB

 

Professoras e pesquisadoras da Universidade de Brasília, elas construíram trajetórias de destaque no cenário científico e tornaram-se referência em suas áreas de atuação. Cinco mulheres que desafiam tendências e ocupam os espaços com competência, coragem, posicionamentos claros e opiniões manifestas.

 

Lourdes Bandeira, na Sociologia; Ela Wiecko, no Direito; Sônia de Freitas, na Biofísica Molecular Experimental; Rita Segato, nos Direitos Humanos e Antropologia; e Jaqueline Mesquita, na Matemática. Feminismos em suas diferentes manifestações, pluralidades e especificidades.

 

“Existem muitos feminismos e eu sou de um deles. Independentemente das diferenças, podemos ir todas juntas, na mesma direção, sem sufocamentos. Iremos resolver vários problemas da sociedade quando, de fato, enfrentarmos o patriarcado”, se posiciona Rita Segato.

 

Romper com o modelo social centrado na dominação masculina é desafio diário e de alta complexidade, na opinião de Lourdes Bandeira. “As mulheres carregam o histórico de exclusão de direitos elementares e, consequentemente, de vulnerabilidade. Estão fora, por exemplo, da maior parte dos postos de comando, poder e decisão. Existem mudanças, mas não há ruptura de mentalidade. O poder patriarcal e seus significados simbólicos se mantêm e se fortalecem.”

Quantidade de bolsas de incentivo à pesquisa e formação de recursos humanos concedidas a mulheres e homens pelo CNPq. Fonte: CNPq | Arte: Secom UnB

 

Na ciência, é preciso observar os reflexos dessa estrutura e os aspectos conjunturais de um país no qual o investimento em pesquisa e desenvolvimento segue muito abaixo da média de nações com maior Produto Interno Bruto (PIB). “Seguir carreira científica, no Brasil, é sacerdócio”, sintetiza Sônia de Freitas, do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB.

 

A participação feminina na área aumentou na última década, inclusive, em áreas tradicionalmente masculinas. Há equilíbrio, por exemplo, no número de mulheres e homens cadastrados nos grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

Na distribuição de bolsas voltadas à formação de recursos humanos no campo da pesquisa científica e tecnológica, elas são maioria nas ciências Agrárias (50,7%), Biológicas (60,1%), da Saúde (68,5%), Humanas (59%), Sociais Aplicadas (55,4%) e Línguas, Artes e Letras (62,7%). Os homens dominam as Engenharias (61,4%) e as Ciências Exatas e da Terra (65,8%).

 

Se elas formam maioria nas bolsas de iniciação científica, de mestrado e de doutorado, levantamento do CNPq revela que grande parte das modalidades de auxílios classificados como estímulo à pesquisa – bolsas de Produtividade em Pesquisa; Pesquisador Visitante; Recém-doutor; Desenvolvimento Científico Regional; Apoio Técnico e Fixação de Doutores – são destinadas aos homens. Em suma, ainda há que avançar.

Na lista de intelectuais mais representativos do pensamento latino-americano, Rita Segato foi professora na UnB por 32 anos. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

HISTÓRIAS – Parte dessa minoria feminina, a professora aposentada Rita Segato é pesquisadora 1A do CNPq, classificação conferida a profissionais de excelência continuada na produção científica e formação de recursos humanos. Mesmo fora da sala de aula, a docente é associada a dois programas de pós-graduação na UnB, orientando trabalhos na Bioética (FS) e em Direitos Humanos (Ceam).

 

Por sua reconhecida trajetória acadêmica e contribuição ao campo dos direitos humanos, antropologia, estudos de gênero e ética pública, receberá o prêmio Latino-americano e Caribenho de Ciências Sociais – Clacso 50 Anos. No ano passado, foi incluída pela revista mexicana La Tempestad na lista dos quatro intelectuais mais representativos do pensamento latino-americano contemporâneo. Foi reconhecida, ainda, entre as 30 intelectuais iberoamericanas mais influentes, pela agência EsGlobal.

 

Rita foi coautora da proposta de cotas para estudantes negros e indígenas na Universidade de Brasília, instituição pioneira no sistema de ações afirmativas na educação superior do Brasil.

 

“Democratizar uma universidade em termos raciais foi tocar no lugar da reprodução das elites branqueadas. Encontrei muita resistência após iniciar essa luta. Algumas portas foram fechadas, saí do Departamento de Antropologia. Apesar de momentos dramáticos, fui muito feliz na UnB e as cotas são uma vitória nossa”, lembra a professora.

 

A antropóloga afirma nunca ter sofrido perseguição pelo fato de ser mulher, mérito de sua força inabalável perante as situações hostis. “Isso é herança da minha mãe, Elsa Segato, que me dizia para nunca pedir opinião a um homem. Portanto, nenhuma posição me intimida.”

 

A qualidade humana e intelectual que existe na Universidade de Brasília é o alicerce da trajetória de Rita Segato. “De forma geral, os estudantes me emocionam. Tenho quatro ex-orientandos de doutorado e uma ex-orientanda de pós-doutorado professores da UnB, além dos que são docentes em outras universidades brasileiras e estrangeiras. Tenho carinho especial também às pessoas que sempre me apoiaram, como o professor Volnei Garrafa.”

Referência em pesquisas sobre feminismo e violência de gênero, professora Lourdes Bandeira assumiu cargos de destaque dentro e fora da UnB. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

FEMINISMO, AÇÃO E POLÍTICA – A professora do Departamento de Sociologia (SOL) Lourdes Bandeira também figura na elite da produção de ciência e formação de recursos humanos no Brasil. Bolsista Pq-1B do CNPq, a docente atua com projetos sobre feminicídio no Brasil e relações de cuidado em redes interinstitucionais de apoio às mulheres vítimas de violência.

 

A socióloga entrou na UnB em 1975, aluna da pós-graduação. “Eu era representante estudantil e, ameaçada de expulsão, saí da Universidade quando ela foi invadida pelos militares.” Então, foi para a Paraíba como professora colaboradora e chegou a hospedar o antropólogo Darcy Ribeiro em sua casa.

 

Em João Pessoa, Lourdes Bandeira participou de movimentos em defesa dos direitos humanos e, paralelamente, notou que as constantes situações de violência de gênero na cidade a incomodavam. “As notícias de mortes de mulheres eram diárias. Tive duas alunas assassinadas. Era o início do meu engajamento”, relata.

 

Além da trajetória científica, a carreira da professora é fortemente marcada por sua presença nos espaços de poder e de formulação de políticas. Foi secretária de Planejamento e Gestão da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), de fevereiro de 2008 a janeiro de 2011, e secretária-adjunta da pasta de março de 2012 até janeiro de 2015.

 

“Exerci cargos de visibilidade graças à minha trajetória de pesquisa, à minha produtividade acadêmica e, claro, à militância. Nunca fui filiada a partido político e, ao longo dos anos, trabalhei muito para formar gerações”, analisa.

 

Na UnB, já foi chefe do Departamento de Sociologia, coordenadora de linhas de pesquisa, da pós-graduação e do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (Nepem/Ceam) e é membra do Conselho de Direitos Humanos (CDHUnB).

 

Lourdes Bandeira enfatiza que suas posições feministas encontraram resistência na academia. “Enfrentei muitos preconceitos, mas não me importo em brigar pelo que acredito. A defesa da autonomia e da igualdade de direitos das mulheres é uma luta política.”

Ela Wiecko já foi vice-procuradora-geral da República. Na Universidade, trabalha com outras professoras para inserir a perspectiva de gênero no Direito. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Ocupar os espaços dominados pela presença masculina é especialidade da professora Ela Wiecko, da Faculdade de Direito (FD). “Na época da minha graduação, eu não tive nenhuma professora na área do Direito. A maioria da turma era composta por homens e me incomodava aquela presença masculina forte nos ambientes, nos seminários. Então, eu sempre era 'furona'. Participava de tudo o que eu podia.”

 

A docente da UnB é procuradora do Ministério Público Federal, no qual 70% dos membros são homens. “Fui a primeira presidenta da Associação Nacional dos Procuradores da República, depois disso não houve outra mulher nesse cargo. Abrir caminho e assegurar a presença feminina eram alguns dos motivos que me moviam a, por exemplo, participar da disputa para a Procuradoria-Geral da República.”

 

Sexismo e racismo estruturam as instituições brasileiras, inclusive, a universidade, na visão de Ela Wiecko. Na UnB, estipulou uma meta antes de se aposentar: inserir a perspectiva de gênero no ensino do Direito. “Isso vem sendo feito na pós-graduação de uma forma geral e em matérias optativas na graduação. No entanto, a perspectiva não está incorporada de forma transversal nas demais disciplinas ou mesmo nas práticas. O feminismo é extremamente crítico e desestruturante. É um desafio”, revela.

 

Frente às adversidades que surgem pelo caminho, Ela Wiecko se apega às ações com potencial de construir algo transformador. “Gosto de trabalhar para fazer a diferença. A justiça é meu ponto de partida. E as coisas são justas quando existem condições igualitárias e respeito pelas liberdades do outro.”

 

AMOR À CIÊNCIA – “Meus pais são pessoas de pouco estudo e almejavam uma vida diferente para os filhos. Antes de escolher nossos nomes, minha mãe colocava um 'doutora' na frente, para ver se combinava. Deu certo. Somos cinco filhos, todos doutores e dois professores de universidades.”

 

A história contada pela docente Sônia Maria de Freitas comprova uma suspeita antiga: a de que sua paixão pela pesquisa surgiu quando criança, com o incentivo dos pais e da irmã mais velha, que sempre lhe presenteava com livros de ciências e literatura.

Docente Sônia de Freitas pesquisa proteína que pode auxiliar no tratamento do câncer de mama. Foto: Amália Gonçalves/Secom UnB

 

Sônia fez graduação, mestrado e doutorado na Universidade de Brasília e escolheu a Biofísica Molecular Experimental para brilhar, território onde poucas mulheres se destacam. Entrou para o quadro de docentes da instituição em 1993. “Aqui, sou a única mulher desta área. Muito firme e determinada no que faço.”

 

A fama de durona não incomoda a professora. “Os alunos conhecem até o barulho da minha chinela. Quando ouço uma centrífuga ligada, então, saio correndo para monitorar o que estão fazendo. Mas eles sabem que têm todo meu aporte acadêmico e emocional”, garante.

 

O zelo pelo Laboratório de Biofísica do IB tem justificativa. Desde que entrou na Universidade como docente, dedica-se à montagem de um espaço para o desenvolvimento de trabalhos de alto nível. “Tínhamos aqui grandes pesquisadores, como o professor Manuel Ventura, hoje emérito. Mas a infraestrutura era precária e necessitava de reestruturação."

 

O trabalho foi árduo. Ao longo dos anos, a pesquisadora buscou parcerias e colaboração com outras instituições, se associou ao Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas, e construiu seu currículo na área. “Submeti projetos para várias instituições de fomento à pesquisa. Com esses recursos e com o auxílio de projetos institucionais da UnB, conseguimos adquirir equipamentos de ponta para modernizar o laboratório. O montante aplicado gira em torno de R$ 6 milhões e hoje o espaço possui estrutura de primeiro mundo”, explica.

 

A professora é pesquisadora nível 2 do CNPq e, em linhas gerais, trabalha com a caracterização estrutural e determinação tridimensional de biomoléculas, importante para o desenho de drogas e para entender a função dessas macromoléculas no meio fisiológico da célula. Um exemplo prático de sua linha de pesquisa é o estudo sobre a inibição da via de degradação de proteínas no contexto do sistema de ubiquitina-proteassoma, que consiste na caracterização funcional de uma proteína específica – o BTCI – e seu potencial efeito contra o câncer de mama.

 

“Além de atividade anticancerígena, estamos fechando uma tese de doutorado que mostra resultados positivos do BTCI em aspectos hemodinâmicos e cardiovasculares. Experimentos mostraram, por exemplo, que ratos tratados com esse inibidor tiveram forte diminuição da pressão arterial, entre outras aplicações. São indícios promissores”, aponta Sônia.

 

A bióloga chegou a pedir a patente internacional do material, fruto de décadas de pesquisa e orientações de duas teses de doutorado e três dissertações de mestrado. “Fiz contato com o Instituto Nacional do Câncer, que sinalizou positivamente para os testes in vivo. Mas a patente foi quebrada. Até hoje não sei como isso aconteceu. O fato é que as pesquisas que deveriam ser sigilosas estavam públicas e o pedido não se concretizou”, lamenta.

 

Com ou sem patente, Sônia de Freitas não desiste. Disponibilizar o conhecimento aos alunos e à sociedade seguem sendo metas prioritárias. “Amo dar aula, observar meus alunos indo para o exterior, virando um colega pesquisador. É recompensador ver tudo germinar."

Dar espaço a mulheres e fortalecer a presença feminina na ciência e na matemática estão entre os objetivos da professora Jaqueline Mesquita. Foto: Amália Gonçalves/Secom UnB

 

SIMPATIA PREMIADA – Mostrar que mulheres têm imponência e que o gênero não deveria ser barreira para o empenho profissional são algumas das aspirações de Jaqueline Mesquita, professora do Departamento de Matemática (MAT). Ser inspiração para as mulheres que pensam seguir carreira acadêmica, sobretudo nas Exatas, é um desejo.

 

A docente foi a única brasileira matemática escolhida entre candidatos do mundo inteiro para a edição de 2017 do Heidelberg Laureate Forum, evento que reúne anualmente 200 matemáticos e cientistas da computação de carreiras promissoras. Entre os participantes, 35% eram mulheres.

 

O feminismo é muito caro à docente, que afirma já ter ouvido muitas frases que não chegam a ser questões para os pesquisadores homens: “Mas e seu marido? Ele não liga de você viajar desse tanto?”. “Felizmente, ele me apoia e incentiva muito”, ri.

 

A professora foi eleita membra afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC) para o período de 2018-2022. Também é secretária regional da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) da região Centro-Oeste e Minas Gerais e irá compor a delegação brasileira na assembleia geral da União Matemática Internacional (IMU), em julho de 2018.

 

Dentro da sua área de análise, ela trabalha com equações diferenciais com retardamento, importantes para estudar fenômenos que não ocorrem instantaneamente, mas que possuem um lapso de tempo entre a causa e o efeito. Ou seja, as causas do estado presente de um certo sistema são consequências de uma história passada, descritas por retardos. Um exemplo de fenômenos deste tipo é o tempo entre a ingestão de um medicamento por um paciente e o seu efeito, que não ocorre instantaneamente.

 

Em reconhecimento à sua tese de doutorado, ganhou, em 2012, o prêmio internacional Bernd-Aulbach prize for students em Novacella, Itália, concedido pela International Society of Difference Equations.

 

Para o futuro, a docente pretende fortalecer a presença feminina na área. Para isso, está à frente de eventos e atividades com foco na participação de mulheres na ciência e também na área de equações diferenciais. Neste semestre, irá orientar sua primeira aluna de doutorado.

 

UnB POR ELAS – Integrando as ações de valorização da história da Universidade de Brasília e de quem ajuda a construir uma UnB Mais Humana, a Secretaria de Comunicação lança esta série especial que aborda o protagonismo feminino na instituição. Toda quinta-feira do mês de março será publicada uma reportagem inédita, com o objetivo de traçar um panorama sobre as políticas institucionais de apoio e proteção ao direito das mulheres, além de contar as trajetórias de alunas, técnicas, professoras e trabalhadoras terceirizadas e seus dilemas em busca de equidade de gênero. 

 

>> UnB por Elas: em busca de equidade

>> Relatos de vida, dedicação e luta

>> As batalhas por novos horizontes

 

*com colaboração de Thaíse Torres.

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