DIVERSIDADE

Entrevista com primeiro estudante da Universidade de Brasília a obter o nome social na instituição. Aluno foi orador da turma de Ciência Política

 

  

Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB


Em 18 de fevereiro, no Centro Comunitário Athos Bulcão, no campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília, o estudante Marcelo Caetano da Costa Zoby, hoje, com 26 anos, foi orador da turma do curso Ciência Política, que colou grau naquela noite. O discurso do rapaz – negro e primeiro homem transexual a conseguir usar o nome social na UnB – reverberou na internet. Caetano lista críticas à Academia, à estrutura de ensino superior, à sociedade. Recém-ingresso no mestrado em Direito na UnB, Marcelo concedeu entrevista à Secretaria de Comunicação da Universidade.

 

“Ser homem negro é um lugar muito específico no mundo”, comenta. Aos 20 anos, o estudante passou a se identificar como homem trans. Marcelo conta que vivenciou vários tipos de violência quando era mulher, desde o assédio dentro do ônibus ao medo de estupro. Hoje, a relação com o ambiente mudou. A recepção da sociedade é diferente, relata. “Para mim, é muito difícil a perspectiva das mulheres. A transfobia está estruturada e petrificada na sociedade, mas, ainda assim, agora me sinto mais seguro em andar à noite. Meu corpo hoje encarna uma figura de ameaça”, diz. Ao passo que deixou de vivenciar violências recorrentes contra a mulher, Marcelo Caetano ingressou em um grupo também alvo de agressões: o do jovem negro. Para ele, o temor de uma violação sexual pode ter reduzido, mas o medo da violência da polícia, por exemplo, não.

 

Somam-se à realidade de Caetano os percalços que surgem na vida de um transexual. “Existe um exercício perverso em relação à pessoa trans, que envolve a invisibilização. Não se sabe quem são essas pessoas”, afirma. “Uma pesquisa brasileira indica que 90% das mulheres trans estão na prostituição”, prossegue, ao comentar a dificuldade de inclusão e aceitação de transexuais no mercado de trabalho.

 

Marcelo Caetano foi o pioneiro a ter garantido o uso do nome social para alunos na UnB. Em setembro de 2012, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) aprovou o pedido do estudante. A partir daí, criou-se precedente, dentro da instituição, para que outros estudantes e servidores também usassem o nome social. “O instituto do nome social é um facilitador, para estarmos minimamente nos espaços. Contudo, do jeito que é, é uma gambiarra. Porque, até agora, só vale para universidades e algumas escolas”, pontua. “Ainda assim não é inclusivo e não resolve. O que a UnB pode fazer é repensar a institucionalização do nome social. Fazer a comunidade acadêmica entender e respeitar. Fazer com que todos estejam atentos”, adverte. A resolução da Universidade que regulamenta o uso do nome social está em elaboração.


A seguir, Marcelo Caetano responde a quatro perguntas sobre trechos de seu discurso, da noite de 18 de fevereiro:


“Nossa cor é objeto de pesquisa. Nosso sexo, etnografia. Nossas casas são seu campo. E seu olhar branco, macho, eurocentrado justifica-se como metodologia”

 

Secom/UnB: O que a Universidade pode fazer para mudar isso?

 

Marcelo Caetano: A Universidade pode repensar o que está estudando. Pode iniciar, por exemplo, pela bibliografia. Não há mulher nem negro nessas referências. O que existe no padrão de ciência está centrado no macho. É possível deslocar as perguntas que a Universidade faz para pensar sobre si. Há muitos trabalhos sobre transexualidade, homossexualidade, mas não há sobre a cisgeneridade. Há pesquisa sobre o negro, mas não há sob a perspectiva do olhar do negro.  É preciso deslocar o olhar capaz de produzir conhecimento para um novo ponto de vista. O outro é o desconhecido e é o que é estudado. Contudo, o que é considerado “normal”, ou padrão, não é alvo de pesquisa. O pesquisador é a regra e, portanto, não precisa ser estudado, e isso é um problema. Há possibilidade de outros diálogos, de compreensão de outras realidades, de reconhecimento de outras formas de vida. A ciência está muito marcada dentro de um contexto histórico sobre o que é o humano. Parece-me que esta tem sido a perspectiva da ciência, todavia, é necessário procurar outras perspectivas e vozes. Parece-me problemático que o sujeito universal seja tão específico. Creio que a ciência deva se abrir para outras possibilidades do que é o ser humano.

 

 

“Queremos interromper o jantar e começar tudo de novo: reerguer uma universidade que seja do povo e para o povo”


Secom/UnB: O que precisa ser feito para que a universidade seja, segundo sua perspectiva, do povo?

 

Marcelo Caetano: É necessário repensar a extensão dentro da universidade. Do jeito que é, não é abrangente. O que é realmente obrigatório é o ensino e a pesquisa. É importante existir extensão de forma que se articule os debates nas instituições de ensino superior. Os problemas que temos aqui dentro não são diferentes dos problemas que existem na sociedade. Temos uma série de possibilidades de outros diálogos com a comunidade externa. É necessário haver disponibilidade de diálogo do ponto de vista institucional. E porque não estamos dialogando? Não temos resposta para tudo. O que temos é uma série de problemas que precisam ser debatidos.

 

“[Universidade] Onde não apenas se fala sobre o outro, mas onde o outro se torna um de nós que é capaz de falar sobre si mesmo”

 

Secom/UnB: Como a universidade pode ser um ambiente inclusivo e plural?

 

Marcelo Caetano: Poucos transexuais ocupam as universidades, chegam a estudar, a ser pesquisador, professor. Os sistemas de seleção para a docência, por exemplo, já são excludentes. O Enem, por outro lado, surge como novidade positiva. Apesar disso, a transfobia está institucionalizada na sociedade e na universidade. O nome social é precário. É necessária a institucionalização de políticas de inclusão que deem conta das repercussões necessárias para entrarem em prática. Falta à intelectualidade compreender as necessidades reais das pessoas trans e interpretá-las de forma ampla, com educação e informação.

 

“Essa ciência que trabalha com hipóteses e esquece que o que chama de objeto é feito da carne viva”

 

Secom/UnB: Como você avalia a relação entre a produção acadêmica e o objeto de estudo?

 

Marcelo Caetano: Faço uma reflexão de como a Academia produz estudos assépticos, que não reproduzem a realidade. No caso do Direito, por exemplo, os estudos tomam por base o Estado Democrático de Direito, ao passo que sabemos que a polícia agride e mata parte da população. A ciência está decolada da realidade. Para a maioria dos estudantes de Direito, contudo, essas garantias existem. Há uma realidade em que essas garantias existem, mas não é assim para a maioria da população.