OPINIÃO

Alexandre Simões Pilati é professor associado de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, doutor em Literatura pela UnB (2007). É pesquisador e professor na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, poesia.

Alexandre Simões Pilati 

 

Ao dizer, em um dos versos mais conhecidos de sua obra, “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade estava, entre outras coisas, aludindo a uma condição de existência da poesia que revela dialeticamente virtudes e limites dessa forma de expressão humana. A poesia, cujo Dia Nacional, comemorado em 31 de outubro, remete exatamente ao nascimento de Drummond, é uma forma de interpretação do mundo que une traços da natureza de sua produção, conforme é vivida pela particularidade da individualidade criadora (nos versos citados, representada pela metáfora das “duas mãos”), a traços do desejo de universalidade que atravessa o poeta e ao mesmo tempo se impõe como condição de eficácia estética da forma (nos versos citado, representada pelo “sentimento do mundo”). Embora essa dialética seja reconhecida de modo mais integral a partir da configuração histórica dos gêneros literários da modernidade, é possível verificar que a experiência única do sujeito em suas circunstâncias cotidianas e o sentimento de conexão dessa particularidade com um plano de genericidade humana encontra-se em um sem-número de produções que podemos denominar hoje, desde o nosso próprio lugar histórico, como “poesia” produzida pela humanidade ao longo dos séculos.

 

O grande poeta alemão Goethe dizia que “toda poesia é de circunstância”. Vista desse ângulo, considera-se a poesia uma interpretação das relações humanas capaz de vincular uma experiência social e historicamente determinada aos fundamentos da humanidade considerada em seu processo histórico de constituição genérica. A ferramenta utilizada pelo poeta para realizar essa transfiguração universalizante das circunstâncias é a palavra. Isso quer dizer que o poeta usa para a elaboração de sua arte um material que pode manejar com plena liberdade, mas que, contraditoriamente, não foi criado por ele enquanto indivíduo. Essa é, por si só, uma condição de historicidade da poesia, isto é: o poeta cria de forma livre, nos melhores casos de forma desalienada e desalienante; entretanto, o faz com ferramentas que não foram por ele criadas. Para comunicar e atender às necessidades humanas do gozo, da fantasia, da efabulação utópica e da tradução da realidade por mecanismos de nomeação mais intensivos, é necessário que o poeta saiba pesquisar, na linguagem disponível, o que esteja à altura do diálogo inter-humano que se propõe em toda arte da palavra. Assim é que, com suas especificidades, poesia e vida se equivalem, pois em uma as experiências da outra se elevam, se complexificam e se ressignificam.

 

Toda experiência de linguagem é uma experiência de sociabilidade; é, pois, uma experiência política, em sentido amplo. Quando o poeta maranhense Ferreira Gullar diz que a poesia “sim, é uma luz”, “mas uma luz que vem do chão”, talvez esteja direcionando nossa atenção ao fato de que é com essa materialidade concreta das relações humanas (e não de sua mera aparência) que se faz a característica mais peculiar da poesia. Se não é etérea, se não é transcendente, a poesia é uma forma de linguagem que vincula o leitor a momentos intensivos das relações que os sujeitos estabelecem com a sua individualidade concreta, com a natureza, com a própria linguagem, com os demais sujeitos concretos. Embora às vezes prefigure a fuga das circunstâncias imediatas, a poesia desenha entre a subjetividade do poeta e a do leitor um elo dinâmico, verdadeiro porque composto pelas contradições materiais do mundo e referido ao leitor como mundo humano. Eis a missão, o destino real da poesia no mundo humano.

 

Talvez não haja melhor e mais sintética definição da função social da poesia do que aquela que se grava num famoso soneto do poeta alemão Rainer Maria Rilke e que o brasileiro Manuel Bandeira traduziu como ninguém para a língua portuguesa. Nesse poema, intitulado “Torso arcaico de Apolo”, o autor conduz o olhar do leitor pela forma artística da estátua do deus antigo e, também, para aquilo que lhe falta (a cabeça, o olhar, o sexo...). Muito embora apenas um fragmento, aquela forma artística interpela o sujeito do poema evocando sentidos e significados que levam à conclusão que, na tradução de Bandeira, assim se enuncia: “Força é mudares de vida”. Ora, não há outra razão mais elevada para a poesia concebida como arte da palavra que transforma o mundo circunstancial em um mundo com significado total. Ao transfigurar a realidade, a poesia nos convoca a transformarmo-nos; e conosco, quem sabe, transformar-se-á também a realidade.

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