Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

“A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus”.

 

Ganha um picolé quem lembrar de onde foi extraído o trecho acima, citado outro dia pelo professor e escritor José de Nicola durante o programa “Feito em casa”, programa ótimo, por sinal, dirigido e apresentado pelo também professor e escritor Cineas Santos, na TV Assembleia do Piauí.

 

Não lembrou? Pois perdeu o picolé. O trecho foi extraído de “Farenheit 451”, novela distópica de autoria de Ray Bradbury, no qual brigadistas de um governo autoritário queimam livros, considerados objetos subversivos. E as pessoas são obrigadas a saber do mundo exclusivamente por telões instalados em casas cujos alpendres foram demolidos para evitar que os moradores interagissem e refletissem sobre o que estava acontecendo. O livro foi publicado há sete décadas, mas o trecho lá de cima parece que foi escrito... ontem! “Farenheit 451” (temperatura em que o papel entra em combustão) pode nos ajudar a entender um pouco do alarido em torno do banimento da plataforma “X”, do bilionário Elon Musk, pela justiça brasileira. Bem como a crescente e assustadora alienação da sociedade pelo consumo desenfreado de informações fragmentadas, contidas nas plataformas da internet, que vem resultando na supressão da chamada “leitura profunda” com suas perigosas consequências.

 

A sociedade atual, sujeitada aos ditames da tecnologia, vem se superficializando, se alienando e se tornando presa fácil para qualquer aventureiro de viés fascista. Como ressalta bem o jornalista Severino Francisco, no Correio Braziliense, “Com sua cumplicidade e omissão criminosas, as big techs contribuíram, decisivamente, para a derrocada das democracias e para a ascensão de tiranetes em vários pontos do mundo, por meio de uma política sistemática de propagação de notícias fraudulentas”. O pensamento crítico vem sistematicamente sendo contido. Sem “leitura profunda” do mundo e das reflexões feitas a partir dela, isto que chamamos de civilização vai por água abaixo.

 

Desde quando a queima de livros pode ser uma ação civilizatória? E a indução ao consumo de informação fragmentada e rasteira pode igualmente ser uma característica de civilização? E o predomínio da tecnologia sobre o humanismo pode ser caracterizado como indício de civilização?

 

O romance de Bradbury bem poderia ser classificado de ficção científica se não exibisse, lá bem antes da invasão planetária pela internet e suas plataformas, os riscos a que está exposta uma sociedade onde, sub-repticiamente, vem sendo suprimido o direito de pensar, refletir, questionar. Nada contra os benefícios da tecnologia, muito antes pelo contrário. Mas o que falta é, no mínimo, uma regulação da responsabilidade das plataformas digitais para o controle da difusão de informações que podem se tornar altamente perigosas e inflamáveis. Como, por exemplo, as fake news. E com a dosagem, pelas organizações educacionais – a partir, é claro, da conscientização das famílias – da carga de exposição às telas a que a sociedade como um todo, principalmente as crianças, vem sendo submetida. Pois já restou provado que o excesso de telas é prejudicial até ao equilíbrio psicológico dos usuários.

 

A questão que se coloca acima das posições favoráveis e contrárias à decisão de Xandão é: o que a tecnologia pode fazer para, ao contrário do que hoje ocorre, proporcionar condições à sociedade para discutir, confrontar, refletir, discordar e, sobretudo, pensar sobre a realidade? A distopia de Bradbury dá a pista para a forma como agem os autocratas nos regimes autoritários. Pois a queima de livros já existiu, de fato, na Alemanha nazista. E até aqui mesmo, no Brasil, durante a ditadura militar. Porque os tiranos não gostam que as pessoas pensem. E livros fazem as pessoas pensarem. Os ditadores não querem que as pessoas pensem porque se tornam questionadoras e colocam em risco seus projetos autoritários.

 

Será que plataformas como o “X” são apenas ingênuos espaços de difusão e troca de informações? Os que, até de boa-fé, criticam a decisão de Xandão, alegam que ele suprimiu um espaço democrático de comunicação e por isso o acusam de praticar censura. Mas a verdade é outra. O objetivo de plataformas como o ”X” é, pura e simplesmente, a monetização a partir do acesso dos usuários. Por isso Musk é... bilionário! E para ganhar mais e mais dinheiro ele se alia ao que há de pior na política mundial, justamente aos governantes que agem em nome da democracia para solapá-la em proveito próprio. É apoiador de Bolsonaro no Brasil. De Milei na Argentina. E de Trump nos Estados Unidos, para ficar em três exemplos. A ideologia de Musk responde pelo simples e direto nome de... DINHEIRO! A qualquer custo. Por meios lícitos ou criminosos.

 

Ao se recusar a respeitar a legislação brasileira, mostrou abertamente a forma como encara os direitos dos povos residentes nos países onde sua plataforma opera. Só que nem mesmo sua montanha de dólares é suficiente para eliminar o direito de um povo à sua autonomia. E esse é apenas um aspecto do caráter autoritário e simplista dos que, como ele, comandam as plataformas digitais pelo mundo afora.

 

Agora, se os que ainda acreditam nos valores da democracia não acordarem e começarem a cobrar de seus governantes ações que propiciem o crescimento do pensamento crítico, do questionamento, da reflexão política e ideológica, da defesa da democracia, aí os donos do dinheiro, com seu viés fascista, vão controlar cada vez mais as mentes dos usuários. Entretidos em frivolidades, os cidadãos se tornam presas fáceis e dóceis. Tal como os governantes lá do livro de Bradbury queriam que as pessoas se tornassem pela ausência do pensamento crítico trazido pela leitura de... livros. Livros! E não apenas de tuítes bobinhos como os do “X” e de seus semelhantes.

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