OPINIÃO

 

Isabel Belloni Schmidt é bióloga e mestre em Ecologia pela UnB, fez doutorado nos EUA. É professora do Departamento e da Pós-Graduação em Ecologia na UnB. 

 

Isabel Belloni Schmidt

 

O Coração das Águas do Brasil, a savana mais biodiversa do mundo é também a mais ameaçada, invisibilizada e desmatada de todas as savanas e de todos os biomas brasileiros.
Acredito que boa parte do descaso que a sociedade e os governos brasileiros tem com o Cerrado vem da falta de conhecimento. Conhecimento técnico-científico, mas também conhecimento afetivo, aquele que trás intimidade, vontade de conviver, o conhecimento que temos de nossos amigos queridos.


Muitos dos nossos livros didáticos, dos livros de histórias e romances são centrados em nos mostrar que, na natureza, o bonito são as florestas. Isto constrói nosso imaginário, nos faz buscar árvores altas, e florestas exuberantes mesmo onde elas não pertencem. E nos fazem menosprezar os ambientes abertos, não-florestais.


Pesquisadores, mídia e governos fazem o mesmo – somos todos formados por esta mesma sociedade. Há poucos anos, mostramos isto num artigo do Journal of Applied Ecology: a mídia e as pesquisas privilegiam florestas em detrimento dos campos e das savanas do mundo todo.


Precisamos reduzir estes desconhecimentos.


Oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras dependem de nascentes e rios do Cerrado. As chuvas que infiltram pelos solos do Cerrado distribuem água para rios e reservatórios em todo o Brasil, do Sul ao Norte, das metrópoles do Sudeste ao Pantanal, da Amazônia as Cataratas do Iguaçu. No DF, três Bacias se encontram nas Águas Emendadas.


Temos também centenas de povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de côco babaçu. Que convivem e vivem do Cerrado, gerando renda e nos trazendo pequis, barus, babaçus, capim-dourado, sempre-vivas, e tantas outras maravilhas da nossa sociobiodiversidade.


O Cerrado é uma savana por ter um inverno seco e um verão chuvoso e por nele conviverem naturalmente árvores e gramíneas (capins). E convive há 4 milhões de anos com o fogo natural, iniciado por raios. A convivência com o fogo favoreceu características que protegem as plantas de altas temperaturas: cascas grossas nas árvores, frutos lenhosos que funcionam como isolantes térmicos; raízes com muitas reservas de energia que permitem rebrotar após o fogo.


Mas, calma lá: nem tudo no Cerrado é savana, temos as nossas importantes florestas: matas de galeria, matas ciliares, cerradões, matas secas (estacionais deciduais). Nas florestas, os fogos naturais raramente aconteciam, e não selecionaram plantas para sobreviverem a eles. Qualquer fogo em floresta é extremamente destrutivo, são ambientes sensíveis ao fogo.


E, calma lá mais uma vez: o fogo não é inofensivo às plantas e bichos do Cerrado! As ações humanas tem causado incêndios frequentes e desastrosos, em todo mundo, inclusive por aqui.
Sabendo de tudo isto, o governo federal tem buscado fazer Manejo Integrado do Fogo (MIF) nas áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas). O MIF, considera a Ecologia, a Cultura e a capacidade de gestão de uma área para planejar seu manejo por meio de diversas ferramentas, inclusive o uso de queimas prescritas. Que são feitas em áreas estratégicas, no início da estação seca, sob condições amenas. Criam-se mosaicos na paisagem, evitando áreas contínuas com muito combustível (capins secos). Quando os inevitáveis incêndios começam, na maioria das vezes por ação humana em condições climáticas extremas, podem ser barrados por estas áreas previamente queimadas e literalmente morrer de fome (falta de combustível) pelo caminho. A lógica é que preparar a paisagem para evitar incêndios é mais lógico, mais barato e mais eficiente do que tentar impedir toda e qualquer faísca na nossa cada vez mais longa estação seca.


Muitos avanços foram conseguidos na redução de incêndios nestas reservas federais, o desafio agora é espalhar isto para reservas estaduais, distritais e áreas privadas no Cerrado todo, e a Política Nacional de Manejo Integrado do fogo (Lei 14.944/2024) vem para auxiliar este desafio de ampliar o uso do fogo prescrito e reduzir incêndios.
Cerrado nos dá água e nos protege dos incêndios e gera renda.


A gente precisa dele, e ele da gente.

 

Referências

Silveira, F.A., Ordóñez‐Parra, C.A., Moura, L.C., Schmidt, I.B., Andersen, A.N., Bond, W., Buisson, E., Durigan, G., Fidelis, A., Oliveira, R.S. and Parr, C., 2022. Biome Awareness Disparity is BAD for tropical ecosystem conservation and restoration. Journal of Applied Ecology, 59(8), pp.1967-1975. 

 

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