Benedito Cerezzo Pereira Filho
Já alertamos, em outras oportunidades “comemorativas” à data de 20 de novembro, que sempre nos causa estranheza, apesar de reconhecer a sua importância, ter um dia dedicado à consciência negra. Não que os negros não necessitem dessa consciência, por mais paradoxal que isso possa parecer. Quem leu Fanon sabe muito bem o que estamos a dizer: “o negro escravo de sua inferioridade, o branco escravo de sua superioridade, ambos se comportam em função de uma linha mestra neurótica.”1 Contudo, acreditamos, sinceramente, que a consciência que mais requer consciência, com perdão pelo solecismo, nessa questão toda, é a branca.
Em nosso texto intitulado “Há consciência branca”2, esclarecemos bem essa necessidade e, vejam que lá estávamos tratando, nada mais nada menos, sobre uma abordagem equivocada do magistral Ruben Alves. Os “deslizes” são muitos e até soam com naturalidade. Todos devem se lembrar de que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso3, ao fazer um “elogio” ao então e ainda seu colega de Corte, Ministro Joaquim Barbosa, disse ser ele “um negro de primeira linha”. Se essas duas personagens de inquestionáveis relevâncias no cenário nacional e internacional cometeram essas infelicidades, imaginem num quadro de ignorância e maldade a que, nós negros, não estamos sujeitos.
O ódio que recai sobre os negros é perpetrado em todos os níveis da sociedade e não escolhe sua vítima, se pobre, poderosa ou rica. No futebol, ambiente em que vivemos por mais de oito anos4, era de se esperar, pelo menos, uma trégua, mas, igualmente, o clima nos é muito hostil. Acusam-nos de fazer macaquices e de sermos encardidos. Aliás, adjetivos para nos identificar não faltam. O próprio dicionário da língua portuguesa é riquíssimo nesse quesito ao grafar que a palavra negro tem vários significados e, ao consultar “o pai dos inteligentes”, temos: NEGRO. De cor preta; diz-se dessa cor; preto: terno de cor negra; diz-se de indivíduo de etnia, ou raça negra; sujo, encardido, preto: A criança está com as mãos negras; as nuvens negras anunciavam tempestade; muito triste; lúgubre: "pensar [Casimiro de Abreu] que sua morte poderia ocorrer em Lisboa .... o fazia mergulhar na mais negra infelicidade." (Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas, p. 28); melancólico, funesto, lutuoso: Negro destino o esperava. Maldito, sinistro: Em negra hora chegou ali aquele bandido. Perverso, nefando: O negro crime abalou a cidade. S. m.: Indivíduo de etnia, ou de raça negra. Escravo. Tratamento familiar, carinhoso, e algumas vezes algo irônico, equivalente a 'meu bem', 'meu amigo'; meu nego, meu bichinho: -- Que é que há, meu negro?; Calma, meu negro, isto não vai assim, não! Trabalhar como um negro. Trabalhar muito [sem grifo no original]. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed., rev. e aument., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. pp. 1187). Para Caldas Aulete. NEGRO: adj; escuro; sombrio; denegrido; requeimado do tempo, do sol; lutuoso; fúnebre; tenebroso; caliginoso; que causa sombra; que traz escuridão; tempestuoso; tétrico; horrível; infausto; que anuncia infortúnios; ameaçador; medonho; adverso; inimigo; funesto; maldito; condenado; pervertido; execrável; horrendo; pavoroso; odioso; nefando; desprezível. S.m. homem de raça negra, preto, escravo5.
Como bem asseverou o Ministro Barroso, em seu pedido de desculpa, o racismo tem de ser enfrentado, mesmo o “que se esconde no nosso inconsciente”6. Daí a importância da consciência branca. Mas, o racismo, infelizmente, na sua maioria, tem consciência! Acontece em todos os cenários de (não)convivência da sociedade, até e contraditoriamente, no meio jurídico7. Mesmo no esporte, local cuja inclusão deveria ser a regra. Aliás, somos acusados de fazer firulas, gingas etc., entretanto se esquecem de que desenvolvemos essa habilidade porque, no princípio, quando os brancos trouxeram o futebol para o país da bola, para conseguir o quórum para as partidas, os negros eram “convidados” a jogar, mas com uma condição expressa: não tocar, não relar nos brancos, sob pena de severa punição e até prisão. Como alternativa, eles usavam da ginga para, literalmente, driblar os adversários brancos.
Claro que desculpas são suscitadas e justificativas procuram dar cores diferentes à questão. E é exatamente isso que mais nos toca e dói. O tal “princípio da ausência, no qual algo que existe é tornado ausente, é uma das bases fundamentais do racismo.”9 Assim como gritava Clarice Lispector, “Porque há o direito ao grito, então eu grito”: Você está só! Ou melhor, nós negros estamos sós.
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Referências
1 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. trad. Sebastião Nascimento com colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu editora, 2020. p. 74.
2 PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Há consciência branca? Jornal do Brasil. Publicado em 08/12/2010. Acesso em 18 de novembro de 2024. https://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2010/12/08/ha-consciencia-branca.html
3 O fato ocorreu na cerimônia de aposição do retrato do Ministro Joaquim Barbosa na galeria de ex-presidentes da Corte. Acesso em 18 de novembro de 2024. https://oglobo.globo.com/politica/barroso-chama-joaquim-barbosa-de-negro-de-primeira-linha-em-discurso-21449394
4 Fomos jogador profissional de futebol e vivemos dessa “magia” nos idos de 1980 até 1988.
5 Sobre essa questão, ver o que escrevemos nos textos intitulados PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. “Vida de nego é difícil”, Marília/SP, v. 21.610. 2004; PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’: com consciência ou não, Marília/SP, 2009; PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’ até nos EUA!, Marília/SP, 2008. PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Precisamos falar sobre Brasil. Site Universidade de Brasília, 2020.
6 Acesso em 18 de novembro de 2024. https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/barroso-pede-desculpas-por-chamar-joaquim-barbosa-de-negro-de-primeira-linha-0cidc9gef9iqp2nxhv5pvraqb/
7 acessado em 18 de novembro de 2024. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/11/18/alunos-de-direito-puc-acusados-de-racismo-deixam-escritorios-famosos-em-sp.htm
9 FANON, Frantz. Op. Cit. citado no prefácio de Grada Kilomba. p. 12.
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