OPINIÃO

Isabela Silveira Rocha é doutoranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB). Coordena o Grupo de Trabalho em Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Soberania Internacional do Instituto de Relações Internacionais (Gepsi/IREL). É membra do Núcleo de Pesquisa Informação Pública e Eleições (IPê).

Isabela Silveira Rocha

 

Zuckenberg declarou hoje (terça-feira, 7 de janeiro de 2025) as novas diretrizes políticas da Meta, incluindo o fim das parcerias com agências de checagem de fatos e a adoção de um sistema de moderação baseado em notas da comunidade (Community Notes) – como o que já é feito no Twitter, também conhecido como o “X” de Elon Musk. Em conjunção com a ampliação da divulgação de temas políticos, anteriormente restringidos pela plataforma, e o retorno da recomendação curada deste tipo de conteúdo, estas decisões foram justificadas por Washington como um esforço para promover uma dita liberdade de expressão.

 

Na prática, essas mudanças anunciam um casamento com o presidente eleito Donald Trump, que anunciou a implementação de políticas desregulamentadoras das plataformas digitais em sua política de governo, instrumentais nas sua campanha eleitoral de 2016. Em suma, as estratégias lideradas por Steven Bannon, da Breitbart News, foram fundamentais para moldar o discurso público, promovendo narrativas polarizadoras e disseminando desinformação em massa. Sob sua direção, a Breitbart atuou como um catalisador para teorias da conspiração e ataques direcionados ao establishment político, criando um ambiente de desconfiança generalizada que favoreceu a retórica populista de Trump. A estratégia de Bannon, que incluíam inundar o espaço digital com meias verdades, senão notícias completamente falsas, desestabilizaram os mecanismos tradicionais de verificação e favoreceram a manipulação da opinião pública.

 

E, claro, asseguraram a primeira presidência de Trump.

 

Enquanto a corrida pela regulamentação do espaço digital segue em passos lentos, o Sul Global permanece à mercê de uma dupla ameaça: primeiramente, a Big Tech, hoje, detém quase a totalidade da infraestrutura comunicacional e estratégica das nações latino-americanas, o que implica em fragilidades consideráveis em termos de defesa, seja ela de infraestrutura, ou cognitiva. No entanto, de forma mais perfidiosa, a Big Tech exerce também uma profunda influência sobre o próprio ethos cultural e comunicacional das sociedades ao moldar narrativas e redefinir os limites do que é percebido como verdade. Em português claro, a flexibilização da verdade, promovida pela desregulamentação e pela priorização de conteúdos polarizadores, transforma as plataformas em árbitros silenciosos da realidade compartilhada.

 

Essa flexibilização da verdade implica, particularmente em países do Sul Global, em cenários de instabilidade política que frequentemente resultam em crises políticas profundas. No Brasil, por exemplo, as eleições de 2018 e de 2022 dividiram famílias, amigos, a sociedade brasileira como um todo, também por serem marcadas pela disseminação de desinformação, principalmente pelo WhatsApp, da Meta, onde teorias da conspiração e notícias falsas acirraram a polarização política através de mediação algorítmica – que valoriza retenção da atenção em detrimento de diálogo ou suspeita perante conteúdos suspeitos. Esse cenário se agravou no início de 2023, quando, organizados digitalmente e inflamados por teorias conspiratórias, atos terroristas culminaram na depredação das sedes dos Três Poderes por apoiadores de Bolsonaro, que se recusavam a aceitar – ou acreditar – no resultado das eleições. É preciso ressaltar que esses atos não foram espontâneos, e, sim, nutridos por meses de desinformação massiva em redes digitais não apenas da Meta, mas também via Telegram, onde narrativas de golpe iminente e fraude eleitoral foram amplificadas sem qualquer fiscalização efetiva das plataformas.

 

Esse padrão de desinformação coordenada não é exclusivo do Brasil. Em outros países latino-americanos, como a Bolívia e a Colômbia, o meio digital, dominado pela Big Tech, desempenhou papel semelhante na intensificação de crises políticas, servindo como catalisador de polarização e consequente instabilidade institucional. Por exemplo, também em 2022, na Colômbia, as eleições foram poluídas por campanhas de desinformação massivas direcionadas contra Gustavo Pedro, em que vídeos editados circularam no Facebook e no WhatsApp com respaldo algorítmico, retratando-o como uma suposta ameaça comunista e exacerbando divisões regionais e sociais já existentes. Já na Bolívia e o caso da crise política de 2019, essas mesmas redes sociais foram utilizadas para espalhar notícias falsas após a reeleição contestada de Evo Morales, quando a disseminação catalítica de desinformação, muitas vezes promovida por contas ligadas a interesses políticos do Norte Ocidental, contribuiu para uma escalada de tensões que resultou na renúncia de Morales e, consequentemente, em um período de instabilidade institucional oportuno para os interesses norte americanos.

 

O que se observa é uma instrumentalização da socialização digital por parte de interesses que se beneficiam diretamente da fragilidade cognitiva das sociedades do Sul Global. Segurança cognitiva, nesse contexto, refere-se à capacidade de uma sociedade se proteger contra manipulações informacionais que possam influenciar negativamente a percepção da realidade, moldar comportamentos coletivos e, em última instância, comprometer a estabilidade social e política. Com os Estados Unidos cada vez mais economicamente enfraquecido perante maior competição no cenário global, especialmente devido ao crescimento da economia chinesa e dos países BRICS+, enfraquecer institucionalmente as democracias do Sul Global permite que Washington continue a exercer algum nível de influência sobre os processos políticos e econômicos dessas regiões.

 

É preciso ser clara: a vulnerabilidade cognitiva do Sul Global não é um efeito colateral, mas uma condição intencionalmente explorada. O objetivo de perpetuar uma dependência estrutural é histórico no contexto das relações Norte-Sul, e, hoje, visa-se minar a soberania política e econômica através de narrativas algoritmicamente arquitetadas para beneficiar os interesses geopolíticos e econômicos de atores externos.

 

No Brasil – assim como nos próprios EUA – tentativas de regulamentar as plataformas, visando a proteção da soberania e da defesa do país, tem sido pouco bem-sucedidas. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), embora seja um marco importante, carece de mecanismos que efetivamente responsabilizem as Big Techs por práticas abusivas. Nos Estados Unidos, a situação é igualmente difícil, já que os esforços pela regulamentação permanecem reduzidos devido à força do lobby corporativo e à polarização política. A promessa trumpista de desregulamentar ainda mais as plataformas reforça essa tendência, colocando os interesses corporativos acima da segurança informacional e cognitiva tanto nos Estados Unidos quanto globalmente.

 

No contexto brasileiro, a dificuldade de implementar regulamentação também é reflexo da assimetria de poder entre os países do Norte Ocidental e do Sul Global. As plataformas, com sede principalmente nos EUA, tem a política de ignorar demandas locais ou adotar mudanças mínimas se devidamente pressionados – desde que não ameacem seus interesses corporativos –, acirrando a dependência do Brasil e outros países latino-americanos alheios ao controle sobre suas próprias infraestruturas digitais.

 

Entretanto, o ano de 2025 apresenta uma oportunidade estratégica única para o Brasil, que assume a presidência do BRICS+. Esse fórum internacional, que reúne não apenas a China e a Rússia, mais avançados em termos de Soberania comunicacional, mas também a emergente Índia e os novos países membros, oferece um espaço privilegiado para a articulação de uma agenda de integridade e segurança digital. Como membro chave na união, por contar com uma tradição diplomática robusta, o Brasil pode ser protagonista no desenvolvimento de redes sociais locais, mecanismos de proteção contra desinformação e investimentos em literacia digital, fortalecendo as capacidades institucionais e cognitivas do Sul Global, criando uma internet soberana, regional e apropriadamente regulamentadas, visando o fortalecimento de infraestruturas digitais alinhadas aos interesses dos países membros. Isso pois o Brasil, com sua longa tradição de engajamento em temas de governança da internet, incluindo sua liderança no Marco Civil da Internet, está em posição de propor soluções que equilibrem liberdade de expressão, segurança cognitiva e soberania tecnológica.

Com isso, o Brasil pode não apenas liderar uma resposta à crescente influência da aliança Trump-Zuckerberg e Big Tech, mas também se posicionar como um ator central na construção de uma ordem digital mais justa, equilibrada e sustentável e protegida dos interesses corporativos do Norte Ocidental. E, agora como presidente dos BRICS, assumir o papel de liderança é necessidade: em um cenário global onde a economia das narrativas define o jogo geopolítico, o Brasil tem a chance de transformar vulnerabilidades históricas em uma plataforma de resistência e inovação. A presidência do BRICS+ em 2025 pode marcar o início de uma reconfiguração digital, na qual o Sul Global deixa de ser um receptor passivo de narrativas externas e passa a construir suas próprias histórias, alinhadas aos interesses e valores de suas sociedades. Essa é a oportunidade de reafirmar soberania e integridade, não apenas no espaço digital, mas na própria definição do futuro político e econômico global.

 

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