Kleber Aparecido da Silva
Língua materna, estrangeira, franca, adicional, mundial, global, multinacional, transnacional, internacional – como designar o inglês, usado por milhões de pessoas ao redor do mundo com os mais diferentes propósitos e que hoje se revela não só um produto cultural, mas principalmente econômico? Que “Inglês” é este falado pela atriz brasileira Fernanda Torres, premiada com o Globo de Ouro de melhor atriz de drama pelo filme Ainda estou aqui? O professor de inglês Felipe Coelho postou um vídeo no dia 7 de janeiro de 2025, no qual pretende “avaliar” o discurso em inglês da brilhante atriz. Ora, pergunto-lhe primeiramente: em seu entendimento, o que é “avaliar”?
Professor conhecido na internet por descomplicar a língua com pitadas de humor através do seu perfil no Instagram, demonstra, a meu ver, uma visão retrógada, acrítica e, em muitas vezes, colonial acerca do complexo processo de aprender e de ensinar uma língua adicional. Disse em seu post: “Gente, é sério! Por que ninguém está falando do inglês da Fernanda Torres? Geralmente as pessoas rasgam elogios para brasileiros que falam aparentemente sem sotaque ou com pouco sotaque, o que não é o caso da Fernanda. Ela tem um sotaque próprio que nem é americano nem britânico, ou a mistura dos dois com brasileiro, mas isso não compromete o cuidado com a pronúncia que ela tem”. Enfatizou ainda: “Mesmo com sotaque, a pronúncia dela é impecável, o que mostra que ter sotaque não é um obstáculo para você ser entendido para você falar inglês. Ela tem o que a gente chama em inglês de a good command of the language, um domínio incrível da língua com fluidez e confiança. Ela conjuga os verbos corretamente, ela usa estruturas gramaticais complexas e demonstra um grande conhecimento da língua inglesa”, listou. “Outra coisa que ela transmite é profundidade. Mesmo sendo a segunda língua dela, ela consegue transmitir a profundidade de quem ela é, sem se perder em traduções literais ou inseguranças. Ela também tem o que a gente chama em inglês de poise, que é uma elegância combinada com uma autoconfiança, um equilíbrio”, elogiou. “Ela fala inglês com muita classe, com muita desenvoltura”, concluiu.
A partir destes excertos do vídeo me indago: é possível falarmos uma língua sem sotaque? Como? O que está envolvido em aprender e falar uma língua adicional e, neste caso, Inglês? O que é uma pronúncia impecável? Impecável na perspectiva de quem e por quê? O que é falar “o Inglês” como “falante nativo”? “Falante nativo” de onde? Esta busca pelo falar “sem sotaque” revela o quê? Considero essas questões de suma importância e me proponho a problematizar o Inglês falado por Fernanda Torres e compreendido por todos nós.
Quando optamos pela denominação língua franca para designar o momento atual da língua inglesa no mundo, sabemos que há o risco de discordâncias. Mesmo assim, a escolha recai sobre o termo em virtude da necessidade de nos distanciarmos da denominação “língua estrangeira”, assinalando que vemos hoje o inglês como uma língua que atravessa fronteiras e que produz ambiguidades, sentimentos difusos, contradições. Há também o desejo de assinalar o fortalecimento do não nativo, mesmo conhecendo as restrições quanto ao uso também deste termo. No terreno movediço em que se encontra quem se engaja neste diálogo, concordo parcialmente com Seidlhofer (2001, p. 146) quando define língua franca como “um sistema linguístico adicional que serve como meio de comunicação entre falantes de diferentes línguas maternas, ou uma língua pela qual os membros de diferentes comunidades de fala podem se comunicar entre si mas que não é a língua materna de nenhum deles – uma língua que não tem falantes nativos”. Reconheço, no entanto, que esta definição deixa de fora situações plausíveis para aprendizes ao redor do mundo, uma vez que se pode aprender a língua para interagir com falantes nativos e não nativos. Como captar em um termo situações tão distintas quanto a de língua estrangeira e de língua franca? Mais ainda, faz sentido manter as distinções nativo/não nativo, baseadas em noção de território?
A sugestão de World English ou World Englishes tampouco parece dar conta da multiplicidade de sentidos que a língua inglesa pode adquirir em contextos localizados e que somente podem ser atribuídos por seus próprios usuários/aprendizes. Paradoxalmente, as reflexões sobre essa nova condição têm se dado fundamentalmente no chamado “Círculo Interno”, havendo a necessidade de se promover novos olhares sobre a questão, a partir da perspectiva de estudiosos localizados especialmente no “Círculo em Expansão”. Assim, convido para o diálogo e para a reflexão você, caro/a leitor/a, que tem interesse (ou formação acadêmica na área das linguagens), a (re)pensar e a discutir as implicações do papel da língua inglesa no cenário internacional, assim como suas (re)significações em comunidades locais. Caminhando nesta direção, é possível afirmar que merecem ser também reconfigurados no campo do ensino língua inglesa os conceitos de competência comunicativa e de bilinguismo, na medida em que são geralmente rigidamente fixados por premissas que idealizam o falar e o falante de uma língua. Posso categoricamente afirmar que, vista a partir de noções padronizadas e idealizadas de linguagem, a noção de competência comunicativa revela-se igualmente utópica, sendo, portanto, importante, que busquemos articular o local e o global sob perspectivas interculturais, ao tentarmos ressignificar o referido conceito.
Desse modo, parece coerente pontuar que, a fim de (re)pensarmos a noção de competência em uma determinada língua, mostra-se também preciso abordar e (re)considerar como as línguas têm sido compreendidas e usadas na sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, segundo Rajagopalan (2003, p. 69), “num mundo que serve de palco para o contato, o intercâmbio sem precedentes entre povos, o multilinguismo (também) adquire novas conotações”. Para o autor, o cidadão desse mundo emergente é irremediavelmente multilíngue, sendo o multilinguismo como língua franca uma realidade cada vez mais presente em nossa sociedade.
Nesse sentido, a competência de um falante multilíngue é algo em constante mutação, caracterizando-se, portanto, pelo contínuo inacabamento. Ser competente, nessa vertente, significa saber agir, de modo pleno e crítico, em práticas sociais diversas em que a língua-alvo se faça presente. Grosso modo, ser competente em uma língua assim como Fernanda Torres é possuir proficiências múltiplas, para a (re)ação em diferentes contextos sociais. Em outras palavras, é apresentar letramentos múltiplos, críticos, multissemióticos que permitam o engajamento social e discursivo em diferentes âmbitos e esferas, sob perspectivas éticas e protagonistas. Ser um falante competente, assim, significa ser capaz de falar uma língua em múltiplas zonas de contato, apropriando-se dessa língua para seu próprio bem, com vistas a interagir com pessoas de outras culturas e com diferentes modos de pensar, agir e dizer, histórica e discursivamente marcados, tornando-se apto a enfrentar os novos desafios que o mundo, densamente (multi) semiotizado e repleto de adversidades e desigualdades, coloca a seu caminho, nos mais variados aspectos.
Com base nas questões discutidas neste artigo, defendo que o Inglês de Fernanda Torres revela, com intensidade e detalhes, a ressignificação da concepção que temos e que mantemos de “Inglês” neste momento sócio-histórico, concebido agora em uma perspectiva geopolítica e transcultural, com vistas à (trans)formação plurilíngue, crítica e decolonial. “Ainda bem que Fernanda Torres está aqui”, verbalizando, agindo e nos emocionando de forma plural e plurilíngue com questões que me são caras como perda, coragem e resiliência na sociedade brasileira, retratada de forma problematizadora e crítica, por meio da revisitação de um dos períodos mais difíceis da história do Brasil. Em minha opinião, Fernanda Torres reflete/refracta uma língua que reivindica, de forma protagonista e crítica, a luta constante por direitos humanos em nosso país. Pense nisto!
Referências
SEIDLHOFER, B. Closing a Conceptual Gap: The case for a description of English as a Lingua Franca. International Journal of Applied Linguistics, v. 11, n. 2, p. 133-158, 2001.
RAJAGOPALAN, K. Por uma Linguística Crítica: Linguagem, Identidade e a Questão Ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
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