OPINIÃO

 

Iasmin Emmanuel Souza dos Santos Rodrigues é professora voluntária da Universidade de Brasília. Integrante do Núcleo de Estudos em Diversidade Sexual e de Gênero (Nedig/Ceam).

 

 

 

Iasmin Emmanuel Souza dos Santos Rodrigues

 

Estou cansada. Nas duas últimas semanas precisei resolver questões relativas a documentações que não mudam, acessei registros que não são atualizados, falei com pessoas que não me atenderam bem. E o motivo é ser quem eu sou. Pessoas trans se veem obrigadas a ficar justificando sua existência, acessando memórias que não correspondem a quem somos de verdade: nos é negado o direito ao esquecimento. Às vezes o que nos justifica é um papel assinado e carimbado por médico ou psicólogo. Eu sou uma pessoa transfeminina, trans como tantas outras pessoas que andam nos corredores de nossa Universidade.

 

Se falamos sobre o existir, penso no que Megg Rayara afirma, que “a bicha nasce do discurso”, ou seja, as pessoas nem mesmo têm consciência de sua orientação sexual e já são apontadas como sendo desviantes: viado, sapatão, bicha, caminhoneira, baitola e tantas formas, às vezes mais e às vezes menos pejorativas. No entanto, acrescento, quando alguém reinvindica para si uma identidade trans muitas vezes precisa “provar” sua transgeneridade: a voz das pessoas trans, por si só, nem sempre é o bastante para definir quem nós somos. Mas, vejam, mesmo sendo incompreendidas, caladas, deslocadas, expulsas, feridas: nós estamos presentes, nós existimos!

 

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie fala sobre o risco de uma história única. Não é que uma história única traga necessariamente uma inverdade sobre o que é falado, mas não é a única verdade. Existimos em vários lugares, e existem homens trans, pessoas não binárias, travestis e mulheres trans na Universidade de Brasília. Nós estamos além do que comumente se fala sobre nós. Estamos na graduação e na pós, em avanços na ciência, nas salas de aula de nossa cidade como docentes. Não somos “pessoas que não deram certo na vida”. Nós estamos aqui, nós vivemos e somos felizes como somos, apesar de todas as barreiras que insistem em colocar.

 

A UnB conquistou as cotas para pessoas trans na graduação no fim do ano passado. A vitória não é apenas das pessoas trans, mas sobretudo da Universidade. Com as cotas raciais e indígenas, para além de ficarmos mais perto de ter a cara do que é nossa nação, abriu-se a possibilidade de uma revolução nos processos de construção de saber, com histórias, memórias, teorias e vivências que antes a Universidade não tinha acesso. As cotas trans trazem mais vozes a esta sinfonia que deve ser a produção de conhecimento. Nós chegamos, ousando confrontar ideias de gênero na sociedade, na liberdade que desperta tanto pânico em quem não concebe uma forma diferente de existir e no espanto das pessoas que celebram a existência humana em suas tantas possibilidades. Agora temos, neste lugar que deve ser uma grande Casa de Saber, um espaço reservado para nós que ousamos.

 

E se falamos em uma revolução epistemológica, na profundidade da construção dos saberes, precisamos ainda mais. A UFBA, desde 2009, conta com um Bacharelado em Gênero e Diversidade, outras universidades contam com pós-graduações no mesmo tema. Estudar gênero e diversidade é algo eminentemente interdisciplinar, a grande vocação fundante do projeto da Universidade de Brasília. Precisamos aumentar essas discussões em nossos currículos, por perpassarem a constituição do ser humano em si - para além de corpos trans, inclusive. Nós sabemos que nossa existência na Universidade incomoda, e compreendemos que as ciências não são feitas de certezas e concretudes, mas de incertezas: nossos corpos carregam a dúvida que faz refletir sobre o que é ser gente.

 

E estamos aqui. Se antes de forma mais tímida, hoje em corpo, mente, voz, saberes e vivências. Conceição Evaristo escreve em Olhos d’água que “a gente combinamos de não morrer”. Para bem mais que não morrer, nós, gente trans, gente que historicamente fomos mortas, feridas, expulsas, deslocadas, caladas, incompreendidas, apesar das dinâmicas sociais tenham combinado de nos aniquilar, a gente combinamos de existir. E vamos continuar existindo. E sem pedir permissão a ninguém.

 

 

 

 

 

 

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