OPINIÃO

 

Roberta Cantarela é professora do Instituto de Letras da UnB. Foi a primeira presidenta da Comissão dos Direitos Humanos do IL/UnB, ex-coordenadora das mulheres da Secretaria de Direitos Humanos da UnB e ex-conselheira do Direito da Mulher do Governo do DF. Atualmente coordena o curso de Letras Português EaD/UnB.

 

 

Clélia Gomes dos Santos é doutoranda em Literatura no PósLit/UnB. Professora no ensino básico e técnico no IFBaiano. Interessa-se em pesquisar Literatura e Diásporas; Literatura e Estudo de Gênero, com atenção à escrita de mulheres.

 

Roberta Cantarela e Clélia Gomes dos Santos

 

Neste mês, mesmo em férias letivas, a Coordenação das Mulheres da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) lançou a agenda coletiva #8M UnB 2025 e não hesitou em mobilizar a comunidade acadêmica para ações de promoção a um ambiente universitário respeitoso, plural e livre de assédios e violências de gênero. E é com o tema Tolerância zero contra assédios e violências de gênero na UnB é que se avalia o quanto se parece óbvio dizer que a violência contra a mulher não deve ser tolerada, aliás, mais que isto, o quanto soa natural aos ouvidos.

 

Na prática, um simples aceno atento lembra de que o ano é 2025 e essa afirmação deveria ser desnecessária, mas basta dar um google, ligar a TV em um canal de notícias ou mesmo acessar alguma rede social para notar o contrário: afirmar que não se deve tolerar a violência contra as mulheres permanece tão urgente quanto crucial. A Lei Maria da Penha, criada para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher conforme a Constituição Federal (art. 226, § 8°), parece não ser suficiente na garantia da integridade e, consequentemente, tranquilidade de todas as mulheres e os desafios para aplicá-la são robustos.

 

Fontes do DataSenado (2023) apontam que três em cada dez brasileiras já sofreram algum tipo de violência, dentro ou fora de casa e das mais variadas formas: psicológica, física, sexual, patrimonial, entre outras, e metade das pessoas conhece uma mulher que já foi agredida. Do outro lado, menos de 6% dos homens admitem ter já ter agredido uma mulher, de acordo com a Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), em parceria com o Instituto Patrícia Galvão e o Instituto Beja (2024). A conta não fecha.

 

Em nutrição ao currículo de país entre os mais violentos do mundo contra as mulheres, no Brasil o número de episódios nessa seara que culminam em crimes mais graves – feminicídios é alarmante. Na última terça-feira (25), o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) 2025, lançado pelo Ministério das Mulheres, apontou que, em 2024, foram registrados 1.450 feminicídios e 2.485 homicídios dolosos (com a intenção de matar) de mulheres e lesões corporais seguidas de morte. Esse algarismo descortina universos e contradições. A quantidade de vítimas maior que a de agressores reconhecidos, ineficiência na aplicabilidade da lei, falta de uma rede de apoio às vítimas, deficiência nos ambientes de acolhimento, descrédito, revitimização e até frustração das próprias denunciantes em não ver resolutividade em muitos casos.

 

Ah, falar em dar um google ou ligar a TV, o noticiário trouxe de volta à memória – não as dos próximos à vítima, pois nesses as cicatrizes da violência brutal fundidas em revolta e saudades jamais os deixam esquecer – a imagem da jovem Louise Ribeiro, estudante do curso de Biologia da UnB, assassinada de forma cruel dentro do laboratório do próprio curso em 2016. O motivo? Não aceitou relacionar-se com Vinícius Neres, que, após dopá-la, a asfixiou até a morte. Ela teve os pés e as mãos amarrados e partes de seu corpo queimadas e descartado nas adjacências da Universidade de Brasília. Sim, mas por quais circunstâncias esse crime que chocou não só a academia, a cidade-sede dos poderes voltou à tona, 8 anos depois? Simples (contém ironia), conforme noticiado pelo G1 (18/03/2025), o homem, réu confesso responsável pela morte da estudante, agora em regime semiaberto, invadiu casa da ex-namorada e deixou gás de cozinha aberto para asfixiá-la. O motivo? Ele não aceitava fim do relacionamento.

 

O retorno do caso Louise às manchetes levou muitos leitores ao nome de Thaís Muniz Mendonça, outra estudante da UnB, do curso de Letras, morta aos 19 anos pelo ex-namorado Marcelo Duarte Bauer em 1987. O corpo da estudante foi descartado no matagal próximo à 415 Norte, como um lixo, dilacerado por 19 facadas no pescoço e um tiro na cabeça. O autor do crime, segundo a mesma fonte do G1, fugiu para a Europa, permaneceu preso por oito meses na Dinamarca, em 2001, e teria escapado para a Alemanha em 2002. O ano era 1987. O ano era 2016. O ano é 2025. A história se rebobina.

 

As motivações? Muitas, talvez, mas todas nascidas-frutificadas na misoginia, na repulsa e no ódio ao gênero feminino. O projeto de formação às luzes do patriarcado que empodera-encoraja os homens a acharem que são donos dos corpos e das vidas das mulheres e que ensina que as relações de poder entre os gêneros devem colocá-las em posição subalterna à deles, nunca protagonistas, mas sempre coadjuvantes quando não figurantes e vítimas de suas próprias existências continua movente. Ao homem, reserva-lhe o poder sobre ela, o controle do seu corpo, da sua mente, dos seus bens e até da sua sexualidade. A família, a escola, a mídia, a igreja e a sociedade de modo geral permitem que eles possam crescer e saborear de privilégios, bem como na crença da submissão feminina.

 

O mês era março de 2016. O mês é março de 2025. Sim, março lembra... ‘as águas de março fechando o verão’ e lembra MULHER, ainda que sob o efeito de um 8 de março tomado mais pelo mercado-mídia que mesmo ideológico-reflexivo acerca da história-marco do dia e das atuais condições das mulheres. Lives, programas governamentais, noticiários, palestras acadêmicas, discussões em diversificados lugares da sociedade trazem no cerne de debates a violência contra as mulheres e anunciam o absurdo número das vítimas. Porém, Louise, Vitória, Gabriela Silva de Jesus, Sara Mariano, Hyara Flor, Elaine del Pupo, Rosilda Nogueira, Horaide Bueno, Jeane, Thaís Muniz tiveram suas trajetórias, sonhos e projetos de vida ceifados em junhos, agostos, janeiros, dezembros, outubros. A folhinha na parede (como se usava) ou na mesa do escritório continua a ser ticada mensalmente com os nomes delas e das próximas a caneta tinta-sangue. A misoginia não segue calendário.

 

As flores, os presentes, o carinho-afeto destinados às mulheres em março se liquefazem na fluidez da sociedade, conforme Bauman (2001), e dão lugar aos índices que continuam a elevar a seta no gráfico. O sentimento de impotência é inevitável. Por mais que se fale sobre o assunto, não é uma prioridade de todos evitar que mulheres possam parar de serem violentadas, senão mortas. O ano é 2025 e parece mentira, mas é verdade, há movimentos retrógrados no âmbito político nacional, os quais projetam minar cada vez mais os direitos dos grupos pertencentes a camadas minorizadas.

 

A misoginia não segue calendário, mas escolhe dentre as escolhidas, porque todas são alvos, nenhuma escapa, as suas preferidas, as das trincheiras: as negras, as trans, as lésbicas. É preciso ver o gênero para além da categorização binária e considera as intersecções existentes entre os diversos marcadores (gênero, raça, classe social, etnia, dentre outros), que devem ser vistos de forma articulada nas interações entre as possíveis diferenças e desigualdades presentes em experiências sociais distintas, coletiva e individual. A exemplo do que diz Patrícia Hill Collins, ao refletir o lugar das mulheres negras sob uma perspectiva de imagens controladoras nas quais elas "são projetadas para fazer com que racismo, sexismo e pobreza parecerem naturais, normais, como uma parte inevitável de vida cotidiana” (Collins, 2012, p. 68).

 

Não são apenas dados e índices, mas o retrato de corpos a serem tratados não como mero fenômeno social e, sim, como resultado do machismo impregnado no cotidiano que submete meninas e meninos, desde criança, a uma formação desigual. O caminho é extenso e mulheres continuarão a sofrer violências e muitas, terem as suas vidas interrompidas, mas é preciso começar a travessia desse percurso com políticas de prevenção e proteção mais efetivas, com ações ligadas à diferentes espaços e estruturas sociais e quem sabe, quando homens e mulheres perceberem que o problema da violência contra as elas, é um problema também deles. 

 

Ao invés de inconformidade e efetivo cumprimento da lei, “normalização” dessas violências, desde a aceitação social, traduzido em algo comum até o descaso e a culpabilização da vítima pela cultura machista. Sentar, assistir e quiçá ser a próxima não é opção. Eles insistem, mas “Eu não vou sucumbir / Eu não vou sucumbir / Avisa na hora que tremer o chão / Amiga é agora / Segura a minha mão.” (Elza Soares).

 

Referências

Caso Louise: assassino de estudante da UnB foge durante trabalho externo. CNN, 2025. Disponível em: Caso Louise: estudante da UnB é denunciado por tentativa de feminicídio | CNN Brasil. Acesso em 25 de março de 2025.

Pesquisa DataSenado detalha a violência doméstica contra mulheres negras: desigualdades e desafios, DataSenado, 2025. Disponível em: Datasenado — Portal Institucional do Senado Federal. Acesso em 25/03/2025.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.

COLLINS, Patricia Hill; BIG, Sirma. Interseccionalidade. Editorial Boitempo, 2012.

G1, DF, 2025. Preso por matar estudante da UnB, dopada com clorofórmio, é denunciado por tentativa de feminicídio. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/03/18/preso-por-matar-estudante-da-unb-dopada-com-cloroformio-e-denunciado-por-tentativa-de-feminicido.ghtml| G1. Acesso em 26 de março de 2025.

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