OPINIÃO

Gersem Baniwa é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e liderança de organizações indígenas locais e regionais.

Gersem Baniwa

 

Os povos indígenas são sociedades originárias das Américas, ou seja, povos nativos que desenvolveram e continuam desenvolvendo civilizações complexas, autônomas e altamente sustentáveis, cujas histórias não acabaram, porque continuam vivas e cada vez mais enraizadas na sociedade de hoje. As sociedades indígenas desenvolveram sistemas políticos com grandes impérios, cidades-estados, monarquias, democracias e cacicados.

 

A história do Brasil contada oficialmente está baseada em muitas inverdades criadas pelos colonizadores para atender seus interesses geopolíticos e de acordo com suas cosmovisões e sistemas socioculturais. Para os povos indígenas, o que aconteceu em 22 de abril de 1500 na região de Porto Seguro na Bahia foi uma invasão portuguesa ao território de 1.600 povos habitantes nativos, seguido de declaração de guerra com fins de extermínio desses povos originários, que ainda não acabou.

 

Quando Pedro Álvares Cabral desembarcou nas Terras dos Tupi e dos Guarani em 1500, estes estavam habitando o litoral e se beneficiando de uma região ecológica abundante de peixes, tartarugas, moluscos, crustáceos e sal, proteínas imprescindíveis para a alimentação. Os Tupi ocupavam uma parte importante da zona costeira compreendida atualmente entre o Ceará e a Cananéia (São Paulo) e os Guarany dominavam a faixa litorânea entre a ilha de Cananéia e a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. Todo o atual território brasileiro estava habitado por numerosos povo indígenas.

 

A necessidade de encontrar justificativas civilizatórias, morais e religiosas para escravizar e exterminar os nativos levou os colonizadores a instrumentalizarem fundamentos cristãos etnocêntricos, ora desumanizando-os ora inferiorizando suas culturas, línguas e saberes, propagando ideias preconceituosas de práticas que seriam bárbaras, anticristãs e anti-civilização, tais como pagãos, canibais, degenerados e outras. As ideias preconceituosas passaram a justificar a escravidão, as “guerras justas”, os massacres e o genocídio dos povos indígenas, o maior dos últimos cinco séculos.

 

O discurso da necessidade de integração e da assimilação dos povos indígenas sempre serviu para legitimar o roubo das terras e de outros direitos indígenas, sob o pretexto da perda da identidade. Foi justamente este discurso integracionista e assimilacionista que fundamentou a ideia de “emancipação” indígena, defendida pelos militares no final dos anos 1970, o que motivou forte resistências dos povos indígenas e da sociedade civil.

 

Nas últimas três décadas, surge o Indigenismo indígena, com ascensão de lideranças indígenas ao poder central no âmbito legislativo e executivo federal, a partir das eleições de Joênia Wapichana em 2018 e de Célia Xacriabá e Sônia Guajajara para a Câmara Federal em 2022 e com a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em 2023. Esta ascensão está diretamente relacionada com as estratégias de atuação do movimento que passa a focar ações voltadas para a efetivação de seus direitos básicos, por políticas públicas e a ocupação de funções em órgãos da administração pública.

 

Em 2022, dados do IBGE revelaram uma população de 1.700.000 indígenas no Brasil, representando 0,83% da população brasileira e um crescimento de 89% em relação aos dados de 2010. É a primeira vez na história moderna do Brasil que o número da população indígena residente em centros urbanos (63%) é muito superior à população residente nas terras indígenas demarcadas (37%), situação que requer urgente mudança na concepção, formulação, implementação e avaliação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, uma vez que os direitos e as políticas indigenistas até aqui adotadas e implementadas estão concebidas e orientadas para indígenas habitantes de terras e aldeias indígenas.

 

Assim, o indígena não é somente aquele que mora em aldeia ou em Terra Indígena demarcada ou que fala uma língua indígena, mas também aqueles que moram em cidades e que eventualmente não falam uma língua indígena, mas que se identificam e se autodeclaram como indígena pertencente a um povo e é reconhecido por este povo.

 

A categoria “indígena”, ainda que unifique a pluralidade étnica sob uma única identidade, passa a ser uma forma de “demarcar a fronteira étnica” entre os indígenas e os não indígenas. Essa é uma escolha estratégica de unidade étnica, feita a partir de aliança política intra-étnica e pan-étnica, e como forma de reafirmação das particularidades de cada povo na “união” a partir da identidade política de “parentes”. Essa foi, também, uma escolha estratégica do movimento indígena como forma de fortalecimento de suas organizações intra e interétnicas. Trata-se sobretudo da possibilidade de construção de um projeto de Nação mais plural, que inclua não somente os povos indígenas mas aprofunde a participação política da diversidade.

 

Os indígenas, através de sua forte ligação com a floresta, descobriram nela uma variedade de alimentos, como a mandioca (e suas variações como a farinha, o pirão, a tapioca, o beiju e o mingau), o caju e o guaraná, utilizados até hoje na alimentação. Esse conhecimento em relação às espécies nativas é fruto de milhares de anos de conhecimento da floresta. Desenvolveram o cultivo de centenas de espécies como o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o tomate, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná e outros.

 

Outro legado dos povos indígenas são os seus milenares conhecimentos medicinais. Alguns estudiosos estimam que os índios do Brasil já chegaram a dominar uma cifra de mais de 200.000 espécies de plantas medicinais. A medicina tradicional possui um valor incalculável com potenciais para novas descobertas sobre os mistérios da natureza e da vida e que podem representar soluções para muitos males que hoje afligem a humanidade e os homens da ciência moderna.

 

Existem também as riquezas estratégicas que se encontram nos territórios indígenas, dos quais eles são guardiões e defensores. A principal delas é a megabiodiversidade existente em suas terras, que representam 13% do território brasileiro preservado. Fotos de satélite mostram que as terras indígenas são ilhas de florestas verdes rodeadas por pastos e cultivos de monoculturas. Esta não é apenas uma riqueza dos índios, mas de todos os brasileiros, na medida em que são florestas que contribuem para amenizar os desequilíbrios ambientais do planeta.

 

Durante os séculos de contato com os povos europeus, os povos indígenas não foram apenas vítimas da colonização. Eles também colonizaram os colonizadores com suas culturas, valores, saberes, sabores e fazeres. Há quem acredita (eu acredito) que os povos indígenas inspiraram os ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Várias lideranças indígenas foram à Europa nos primeiros séculos da conquista a convite de reis para participarem de grandes eventos celebrativos dos seus reinos.

 

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