INTERNACIONAL

Doutorando em Direito, Mairu Karajá ficará 11 meses na França, onde pesquisará sobre política e conflitos por arrendamento de terras na Ilha do Bananal

Mairu Hakuwi Kuady Karajá é um dos quatro indígenas pós-graduandos, no Brasil, selecionados pelo edital Guatá. A partir deste mês, ele estará em intercâmbio na Universidade Paris 8, na capital francesa. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

Da terra indígena Krehawá (São Domingos), no Mato Grosso, para a Universidade de Brasília. Da UnB, para o mundo. Aos 27 anos, o doutorando em Direito Mairu Hakuwi Kuady Karajá mal superou a emoção de ingressar na pós-graduação, em 2020 – quando iniciou o mestrado –, e já está prestes a realizar outro sonho: o de estudar no exterior. Ele é um dos discentes brasileiros selecionados em edital inédito da Embaixada da França para mobilidade internacional por indígenas no país europeu.

Oportunizar a pós-graduandos indígenas a experiência de intercâmbio e diversificar o perfil discente em iniciativas de internacionalização são objetivos do Guatá, programa cujo nome traduzido do tupi-guarani significa caminhar. Além da UnB, o edital piloto contemplou estudantes de outras três instituições brasileiras: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Estadual do Amazonas (UEA).

Com ida à França prevista para 31 de agosto, o estudante, oriundo do povo Iny (Karajá), não esconde no rosto a alegria em ver os caminhos abertos para alcançar feito ainda pouco comum entre acadêmicos indígenas, que permanecem sendo exceção dentro das universidades. Apenas 3,3% da população de povos originários do país chegaram ao ensino superior, o que representa 0,5% do total de universitários, apontam dados parciais do Censo Demográfico 2022.

“A sensação que tenho é de conquista, de romper várias barreiras que a gente [os indígenas] vem rompendo nesses últimos anos, principalmente, por exemplo, a de terminar a graduação, ingressar num curso de pós-graduação e, agora, numa universidade estrangeira, da França. É um misto de sentimentos. Essa é a verdade. E as expectativas são as melhores possíveis, porque quero aprender outros idiomas”, compartilha o estudante, que está no primeiro ano do curso doutoral.

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PERSPECTIVAS DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS – Durante o intercâmbio de 11 meses na Universidade Paris 8 Vincennes-St Denis, Mairu continuará a desenvolver sua pesquisa, em duas frentes. A primeira envolve a perspectiva dos povos indígenas sobre a política nacional e sua participação nesta instância, temática que começou a investigar durante o mestrado.

A segunda frente da pesquisa é sobre os conflitos gerados pelo arrendamento de terras indígenas na Ilha do Bananal, no Tocantins, área próxima à aldeia Krehawá, com presença dos Karajá, dos Javaé, entre outras etnias. A prática envolve o aluguel de terras pelos proprietários para uso de terceiros em atividades de produção, o que é ilegal nos territórios dos povos originários.

“Além de colocar em risco a disputa pelo território, esta é uma prática inconstitucional. Então, como eu pesquiso bastante sobre a Constituição, eu analiso essas situações onde ocorrem muitas desvantagens por conflitos de interesses e pessoais, e isso pode levar a riscos para a demarcação do nosso território, além da abertura para possíveis invasões”, explica Mairu acerca do impacto dos arrendamentos na área.

O doutorando informa que este processo vem se tornando comum na Ilha do Bananal e que faltam ações do poder público para garantir outras fontes de renda à população. “A gente entende que o arrendamento acontece devido à falta de políticas públicas efetivas, como a questão de renda para a comunidade. Então acaba que se torna o único meio da comunidade ter sua forma de movimentar a economia local”, observa.

CRÉDITOS DE CARBONO – Uma alternativa à questão vem sendo construída por etnias locais a partir do desenvolvimento de um projeto REDD+ (sigla relativa a reduções de emissões de gases de efeito estufa e aumento de estoques de carbono florestal), executado sob coordenação territorial de Mairu. O REDD+ é instrumento desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima que visa à compensação financeira dos países e das populações envolvidas na conservação e recuperação de florestas e na redução da emissão de gases de efeito estufa.

A partir de uma estimativa da quantidade de carbono na área de floresta em pé preservada pelo projeto – e, portanto, não emitido na atmosfera – e da quantidade de desmatamento evitada, são gerados créditos de carbono que podem ser comercializados a outros países como margem de compensação ao impacto de atividades econômicas emissoras de gases poluentes.

Segundo Mairu Karajá, o recurso levantado por meio dos créditos de carbono pode contribuir para alavancar a organização política, social e cultural da população indígena local. “Na Ilha do Bananal, nós temos dados muito complicados de incêndios, então, através do recurso, pode haver uma recuperação daquela área que foi incendiada e de outras atividades, como saúde, educação, infraestrutura da comunidade, fortalecimento cultural.”

SABERES INDÍGENAS  – Para o doutorando, ingressante por cotas no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/FD), o protagonismo indígena na produção científica deve ser incentivado a partir de ações diversas, como a internacionalização. “É muito importante que exista uma política de fomento para produção científica de indígenas em diferentes frentes de atuação, para contribuir com as universidades e suas comunidades", avalia.

Secretário de Assuntos Internacionais, Virgílio Almeida, e estudante Mairu Karajá em almoço oferecido pela Embaixada da França para os selecionados pelo edital Guatá. Foto: Arquivo pessoal

 

E prossegue: "temos outro olhar e a nossa ciência tem muito que ser mostrada ao mundo, desde o uso das ervas medicinais a como ensinar maneiras diplomáticas e políticas". "As universidades precisam nos enxergar como produtores de ciências em seus espaços, e não apenas como indígenas em processo de inclusão com cotas de ação afirmativa. Temos o que ensinar e, também, aprender”, afirma.

A orientadora de Mairu e professora do PPG em Direito, Rebecca Igreja, ressalta que, além de consolidar a política de cotas na Universidade, as iniciativas de intercâmbio voltadas a indígenas contribuem para alavancar a carreira acadêmica e profissional deste grupo.

“Essa ida à França abre um leque de oportunidades para Mairu e para estudantes indígenas da pós-graduação de forma a expandir os horizontes em outros mercados de trabalho, em carreiras públicas importantes como a diplomacia, a magistratura e a gestão pública", observa a docente. "É uma oportunidade de aprender outros idiomas e de ganhar capital cultural para inserção nesses espaços”, completa Rebecca Igreja.

Secretário de Assuntos Internacionais da UnB, Virgílio Almeida avalia que o programa da Embaixada da França está em consonância com diretrizes em efetivação na Universidade.

“A UnB há muito tempo já vem se posicionando nacionalmente a favor da maior inclusão da população historicamente negligenciada no país. A implementação do vestibular exclusivo para indígenas é uma destas ações que visam atenuar a dívida histórica que o Estado tem com os povos indígenas", diz.

Para Virgílio, o novo cenário que se abre com o edital Guatá é mais um passo na rota de diálogo com os saberes indígenas. "A possibilidade, agora, de estudantes indígenas serem agraciados com bolsas de estudos para mobilidade internacional é mais um avanço para a plena inserção no universo do ensino superior”, destaca.

 

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