PERFIL

Professor aposentado da FAU, emérito José Carlos Coutinho é figura conhecida e admirada no meio acadêmico e na cidade de Brasília

 

De agosto a dezembro de 2019, a Secretaria de Comunicação publica perfis de professores eméritos da instituição. Essa é uma iniciativa de valorização daqueles que fazem parte da Universidade e foram reconhecidos pelo atributo em comum que guardam com a instituição: excelência.

 

Escolhido pelo próprio professor emérito José Coutinho, o local da entrevista não poderia ser outro senão a própria UnB. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Um arquiteto que olha para a Universidade de Brasília, de prédios marcantes e ideação original, e enxerga mais que a concretização de projetos: enxerga alma. Esse é José Carlos Córdova Coutinho, professor emérito que é figura cativa na instituição, reconhecido nos corredores por atributos como gentileza, educação e elegância.

Aos 84 anos, Coutinho esbanja disposição e vitalidade. Natural do estado do Rio Grande do Sul, nasceu em 1935, ano do Centenário da Revolução Farroupilha. “Por pouco minha mãe não recebeu uma gratificação concedida pela comemoração da data histórica para a primeira criança que nascesse naquele ano. Cheguei um pouco depois, às 3h do dia 1º de janeiro”, revela.

Alheio às redes sociais, ele gosta mesmo é de prosa e contato pessoal. “As pessoas me perguntam se tenho Facebook e eu simplesmente respondo: eu tenho faceboca, serve?”, ri.

Prova disso foi o encontro fortuito com a servidora aposentada Francisca Nascimento de Albuquerque, que atuava no Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Universidade de Brasília (Sintfub) quando ele era chefe de gabinete da Reitoria, em fins de 1980 e começo de 1990, na gestão do espanhol Antônio Ibañez Ruiz.

Os dois aproveitaram o momento para relembrar episódios daquele tempo. “Tá vendo? A gente tem muito carinho. Batíamos de frente, mas nos respeitávamos.” Com uma memória impressionante, Coutinho dá detalhes de datas e nomes que marcam a história da instituição.

RELAÇÃO COM A UnB “A UnB foi a razão da minha vinda para Brasília, onde construí minha vida, segui minha carreira e minhas metas”, reconhece. Quando aqui chegou, ele foi apresentado à Universidade pelo professor Edgar Graeff, seu conterrâneo, falecido em 1990.

José Coutinho e Francisca de Albuquerque relembraram com saudosismo o período que atuaram por melhores condições para o serviço público. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

“Ele me levou para conhecer o auditório de Música e disse com um pouco de entusiasmo que era como a acrópole grega. Na verdade, com certo excesso, mas de fato parece um templo”, lembra, bem-humorado.

O arquiteto já tinha recebido convite anterior, mas havia acabado de abrir escritório próprio e dava aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua vinda para Brasília só foi acontecer em 1968, por ocasião de um seminário para discutir e propor a reforma curricular do curso de Arquitetura e Urbanismo.

A qualidade da graduação havia caído após a demissão em massa de mais de 200 professores em 1965. “Nós estávamos hospedados no Hotel Nacional, e os alunos foram até lá elogiar o projeto pedagógico, mas pediram que continuássemos. Decidi ficar seis meses e acabei ficando 50 anos”, resume.

Sobre a razão que o fez permanecer, suas próprias palavras podem justificar: “A UnB era uma universidade nova, com padrões diferenciados. Era um projeto que nos empolgava, todos estavam entusiasmados. Era um desejo coletivo”. Do seu ponto de vista, o principal legado daquela geração foi a construção de uma universidade que até hoje inspira grande respeito.

DITADURA Coutinho soube da invasão das tropas militares à UnB quando estava no Sul para acertar os detalhes de sua transferência para Brasília. Ele conta ter ficado em dúvida, mas mesmo assim decidiu vir e cumprir com sua palavra.

“Nós presenciamos muitos episódios de violência e repressão, teve prisão e até tortura. Quando a gente conta, parece ficção, mas era a realidade”, assegura, com expressão séria. Ao passar em frente à entrada sul do Instituto Central de Ciências (ICC), o professor lembra-se de mais uma vítima: um estudante de Engenharia que foi baleado durante um confronto no campus.

O docente conta outro caso que muito lhe marcou durante o período militar, já no fim da década de 1970. Foi para ele um dos momentos mais dramáticos que presenciou no corredor do Minhocão, quando um grupo de professores estava reunido em uma sala da faculdade para discutir a ameaça que vinham sofrendo, já que muitos estavam sendo demitidos ou exilados.

"Decidi ficar seis meses e acabei ficando 50 anos." Coutinho, de fato, acho a UnB uma linda! Foto: Amália Gonçalves/Secom UnB

 

Ele explica que naquele tempo ainda não existiam os jardins. As vigas do corredor eram formadas por depressões. “Ouvimos uma gritaria e paramos a reunião. Vimos um rapaz desesperado saltando por essas costelas e atrás dele policiais com pistola na mão prontos para atirar. Naquele instinto, corri atrás e pedi para que parassem”, descreve.

Embora aquela imagem tenha ficado em sua mente, ao menos o desfecho da história não foi tão traumático quanto a perseguição ao estudante indefeso. “O rapaz conseguiu chegar até à Matemática e escondeu-se debaixo da mesa do professor Geraldo Ávila, à época chefe do departamento.”

Para enfrentar os tempos difíceis, foi necessário adaptar-se às dificuldades. “Era preciso agir dialeticamente entre uma reitoria repressora e uma juventude libertária. Tudo era visto como comunismo e na verdade os idealizadores da Universidade eram verdadeiros progressistas. Darcy não era comunista, mas tinha uma vertente de esquerda”, difere.

LADO HUMANO Para o docente, o principal da arquitetura é o aspecto humano. “Tudo que diz respeito à vida humana nos interessa, comportamento, temperatura do corpo e ambiente, padrão e estilo social. Enfim, nossa preocupação é com quem vai viver, trabalhar ou frequentar aquele espaço”, sintetiza.

Por isso mesmo, o educador, sempre que podia, levava os estudantes para conhecer outras realidades. “A arquitetura tem que ser na prática, não dá para só mostrar e não se inconformar com a situação do ser humano. É mais do que uma questão de desigualdade, trata-se de justiça social”, expõe.

Tendo visto de perto algumas duras realidades, o arquiteto lembra o episódio da remoção da favela do IAPI, no Núcleo Bandeirante, que resultou na comunidade de Ceilândia. Como tinha a fotografia como hobby, Coutinho fez alguns registros e dá detalhes sobre como foi a retirada. “As coisas da população que vivia à margem das vias foram levadas em caminhões de limpeza urbana e despejadas no subúrbio. Mas é incrível a capacidade humana de se refazer e reconstruir.”

A relação com os alunos também é um indicador dessa sua característica. Ele não conteve as lágrimas quando lembrou casos de dois ex-alunos que tiveram suas vidas modificadas durante a faculdade. Um deles é Assis Aragão, que ficou paraplégico e com movimento limitado das mãos após acidente de carro, há quase 40 anos. “Na ocasião, foi questionado se ele deveria ser desligado do curso, pois não conseguiria atuar na área. Mas ele não só se formou como trabalhou em muitos projetos”, relata.

Uma das curiosidades contadas pelo emérito é que, entre os prédios da Reitoria e da Biblioteca, seria construído o Museu da UnB, mas o projeto nunca saiu do papel. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

O outro estudante foi Paulinho Veiga. “Era um jovem muito combativo, que chegou a ser preso, mas não fazia mal. Ele lutava pelo currículo. O reitor queria que impedíssemos essas manifestações e reuniões na faculdade, mas não podíamos proibi-los, pois não tinham cunho político, era uma causa legítima em prol da educação.”

O docente soube que, após os tempos de faculdade, o estudante teve uma doença degenerativa que paralisou todo seu corpo. “Participei da festa de 40 anos da formatura de sua turma e ele estava lá, ao lado de sua esposa. Ela me disse: pode falar que ele entenderá. Confesso que tive de sair de perto para que não percebessem as lágrimas que escorriam em meu rosto.”

“Apesar de todos os problemas, algo que posso dizer com certo orgulho é que conseguimos produzir cidadãos honestos, combativos, conscientes”, crê Coutinho. O emérito tem grande carinho pelas turmas que ajudou a formar, inclusive ensinou gerações inteiras de famílias: pais, filhos e netos.

CURIOSIDADES Muitos podem não saber sua origem, mas certamente a escultura azul pendurada sobre o pátio do primeiro andar da Reitoria não passa despercebida. E é claro que o docente tinha uma história sobre a obra.

“O Jayme Golubov era professor de Geometria Descritiva, desenhava muito bem, era muito criativo e começou a inventar esses volumes baseados em leis ou teorias geométricas e foi um sucesso”, conta.

Coutinho compartilha que o professor Elvin Mackay Dubugras, um dos autores dos edifícios da Faculdade de Educação, ao lado dos arquitetos Alcides Rocha Miranda e Luis Humberto, saiu na demissão de 1965 e estabeleceu escritório onde projetava as embaixadas do Brasil no exterior para o Itamaraty.

Em uma das embaixadas que ele projetou na Arábia Saudita, Elvin instalou uma escultura de Golubov, mas não se deu conta que estava colocando uma obra de um judeu dentro do país muçulmano.

“Certo dia, perguntaram para ele de quem era a escultura. Com medo de ser linchado, por conta da crise que o Oriente Médio passava no momento, ele então teve uma presença de espírito de dizer que era de um escultor russo muito talentoso. Golubov passou a ser um russo muito famoso desde então”, narra, com tom de divertimento.

Outra informação revelada por Coutinho: “o prédio da Reitoria é um dos poucos originados por projeto paulista. Ele foi desenhado por Paulo Zimbres. A ideia inicialmente era ter água em todas as lacunas do térreo, pois assim a corrente de ar passaria pelo primeiro andar e a evaporação refrescaria os demais andares”, explica. Sobre a área verde entre o ICC e a Reitoria, ele disse que foi idealizada pelo paisagista Fernando Chacel. “Aqui não tinha nada, vi tudo isso aqui crescer”, garante.

Próximo ao Teatro de Arena, José Coutinho recordou uma das últimas homenagens feitas a Darcy Ribeiro, quando o mesmo tornou-se doutor honoris causa pela UnB. “Ele já estava bem de idade e, com a voz embargada, falou: ‘perdoem-me; já não tenho mais tempo de mudar, me aceitem como sou, pois virei um velho frouxo’. Eu agora faço minhas as palavras dele.”

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