Dar voz a pessoas de comunidades marginalizadas, possibilitar que elas contem as próprias histórias e empoderar o debate cidadão e político. Todas essas questões estão presentes na abordagem teórica de Richa Nagar, professora da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, na área de Humanidades (Liberal Arts).
A pesquisadora indiana foi a convidada do #InspiraUnB do segundo semestre da pós-graduação. O público praticamente lotou o auditório da Faculdade de Tecnologia (FT) que tem capacidade para 240 pessoas. Com o tema Situated Solidarities, Radical Vulnerability, and Hungry Translations, a palestra abordou resultados de estudos reunidos no livro lançado este ano, Hungry Translations: The World Through Radical Vulnerability.
Para explorar a temática, Richa Nagar fez questão de compartilhar um pouco de seu percurso acadêmico, que já acumula 30 anos de experiência. Entre 1991 e 1993, realizou um trabalho de campo para o seu doutorado na Tanzânia, país africano que vivenciava a transição do socialismo para a democracia liberal de mercado.
Atuando com origens raciais diversas de comunidades africanas e asiáticas de diferentes castas, como indianos de classes médias e trabalhadores locais, ela percebeu que essas pessoas tinham histórias a contar e precisavam ser ouvidas e incluídas no processo de produção do conhecimento.
“As histórias estavam conectadas com a própria história. As pessoas querem acessar o mundo. Como eu poderia usar minhas habilidades como escritora para estimular a participação ativa? Como a academia poderia ser parceira desses indivíduos que são os melhores críticos do próprio conhecimento?”
Ainda que desencorajada pelo departamento quando chegou nos Estados Unidos, Nagar conta que não desistiu com a desilusão e buscou caminhos nas artes, especialmente no teatro e na produção literária. Por meio do ativismo político, demonstrou que é possível estimular a resistência coletiva e a luta por justiça social.
Citando a escritora indígena norte-americana Leanne Simpson, a professora afirmou que todo tipo de conhecimento é necessário, na emergência de um equilíbrio comunal. “Representações literárias não são apenas descrições benignas; elas entram no e dão forma ao nosso discurso nacional”.
A prática vem, segundo ela, do conhecimento herdado daqueles que foram forçados a viver em opressão, em contextos de violência e resistência. Portanto, a fórmula que encontrou foi realizar experimentos com a própria comunidade, podendo destacar livro de contos, poemas, jornal comunitário e peças teatrais.
O SENTIDO DE FOME – A expressão hungry translations trata, portanto, de reimaginar a tradução, como um “processo de mediação ética e politicamente consciente das direções múltiplas e dinâmicas”. Há uma reconceituação da fome do corpo para a fome do protagonismo intelectual e político.
“Essas pessoas estão nas mãos dos especialistas de diversas áreas que ignoram suas políticas, sua ética, seu ideal, suas lutas marginalizadas”, defende. Por isso, Richa Nagar instiga: “Quais possibilidades de se criar mediação esperançosa e profunda? Como dosar o aprendizado com nossas práticas colonizadoras e nos tornarmos coaprendizes dessa jornada?”
Em sua ótica, o que normalmente se faz é reduzir esses indivíduos a corpos famintos, tendo em vista que “os acadêmicos, filantropos, humanistas e defensores de direitos humanos estão contaminados pela violência das instituições”. É preciso, dessa forma, estabelecer uma dinâmica ética com os objetos.
Com isso, ela criou a disciplina Histórias, corpos e movimentos, na qual os alunos puderam realizar um trabalho coletivo de aprender a aprender a partir das alegrias e das dores de quem vive dada realidade. A proposta é a de despertar como essas traduções podem ser ressignificadas por quem está fora da luta para torná-las um espetáculo.
“Para além das fronteiras da sala de aula, problematizamos as questões de injustiça vivenciada por essas comunidades marginalizadas, tendo em vista que o conhecimento intelectual em si mesmo não basta, nem só o conhecimento espiritual ou emocional”.
Para a pesquisadora, foi um grande desafio, ao propor na universidade uma metodologia de tradução que fomenta conexões profundas no sul global. Nagar sintetizou que o objetivo de sua palestra não era trazer respostas, mas provocar questões e estimular a imaginação para explorar outros métodos e abordagens científicas.
REFLEXÕES – A mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), Andreza Andrade, achou interessante a exposição, especialmente pelo fato de ter citado uma escritora indígena norte-americana. “Vejo como uma provocação, pois é preciso mostrar outros conhecimentos e epistemologias que vão além do contexto acadêmico.”
Como indígena do povo baré da região Amazônica, a jornalista Andreza perguntou a opinião de Richa Nagar sobre como vencer a invisibilidade dos povos tradicionais que, mesmo estando no ensino superior, ainda têm de lidar com o predomínio do discurso não indígena e branco.
A palestrante afirmou que embora haja cada vez mais diversidade de corpos, os conhecimentos externos são vistos como ameaçadores no ambiente acadêmico. “É por isso que eu enfatizo que a fome deve ser para movimentar essas águas do conhecimento, temos que continuar lutando nas nossas áreas por reconhecimento e espaço”, salientou.
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Liza Andrade considera que a fala da pesquisadora indiana desperta a academia para pensar em outras formas de saberes. “O trabalho dela reforça a necessidade da extensão na pós-graduação, uma vez que permite essa troca de conhecimento, para além do produtivismo acadêmico, e possibilita olhares mais sensíveis para a transformação social”.
Estudante do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH), José de Ribamar de Araújo e Silva relatou que esteve na UnB em 1994 participando da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que reuniu todo o Brasil para estabelecer uma política de segurança alimentar e nutricional.
“Para mim, é muito simbólico voltar aqui 25 anos depois como estudante em que se aborda a temática de ressignificar a solidariedade e de trabalhar a fome como algo mobilizador e que nos desafia agora quando o Brasil voltou ao mapa da fome”, frisou.
BOAS-VINDAS – Durante a solenidade, a reitora Márcia Abrahão parabenizou todos os pós-graduandos por conquistarem a vaga numa instituição de excelência. “Nesse cenário de dúvidas e incertezas sobre bolsas e a situação do CNPq, a Universidade está com vocês, espero que permaneçam nos seus cursos e que a pesquisa desenvolvida aqui seja um grande diferencial para a sociedade brasileira.”
“A UnB vai muito além do conhecimento, trabalha de maneira interdisciplinar e ajuda a transformar o pensamento científico do Brasil e do mundo. É com esse espírito que ela foi criada, uma universidade paradigmática, que incomodou muito e sofreu diversas crises e ataques ao longo de sua história, mas que sempre resistiu e sobreviveu”, destacou.
Para o vice-reitor Enrique Huelva, é muito significativo receber uma pesquisadora que fala de forma tão ampla e transversal, “nesse momento no qual a ciência sofre constantes ataques, especialmente as ciências humanas, sociais e sociais aplicadas”.
Do seu ponto de vista, não é exagero afirmar que as humanidades, de modo geral, estão perante o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial, que configura grande paradoxo: “ao mesmo tempo em que a área vivencia um questionamento forte de sua utilidade e relevância, ela nunca foi tão necessária como na atualidade”.
Decana de Pós-Graduação (DPG), Adalene Moreira compartilhou dados da produção científica da UnB, afirmando que 95% das pesquisas desenvolvidas na instituição são demandas trabalhadas dentro dos 96 programas de pós-graduação.
“A palestra de Richa tem relação direta com o contexto de mudanças aceleradas vivenciadas no planeta Terra, de desigualdade, epidemias, fome e intolerância. Por isso é importante para motivar a formulação de soluções transformadoras para o desenvolvimento sustentável”, apontou.