OPINIÃO

Ana Flávia Magalhães Pinto é doutora em História pela Unicamp, mestre em História pela UnB, bacharel em Jornalismo pelo UniCEUB e licenciada em História pela Unip. É professora do Departamento de História e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs.

Ana Flávia Magalhães Pinto

 

Efemérides remetem a fatos que tornam uma data relevante para coletividades. Justamente porque a atribuição de valor especial aos eventos costuma não ser resultado da ação de todos os grupos afetados e muitas vezes expressar a perspectiva de segmentos concentradores de poder político-econômico, a manutenção do destaque acaba também sendo acompanhada pela atribuição de sentidos dissonantes acerca da proposta original. A observação de visões conflitantes sobre uma mesma efeméride nos leva a refletir sobre como as políticas de memória são centrais para o reconhecimento ou não da agência histórica dos sujeitos sociais ao longo do tempo.


Tomemos como exemplo a data de hoje: 15 de novembro, dia em que oficialmente se comemora a Proclamação da República. Na explicação corriqueira, em 1889, militares inseridos na estrutura do Estado, com apoio de ex-escravistas insatisfeitos com os encaminhamentos da abolição, ocorrida em maio do ano anterior, deram fim ao regime monárquico e instituíram, por meio de um golpe, a República. O governo imperial não teria condições de sustentar o terceiro reinado, e o republicanismo seria saída inevitável para uma nação que se queria livre do atraso e desejosa do progresso.


Estamos falando de um país fundado na escravidão e na hierarquização racial dos indivíduos com potencial de dar materialidade à ideia de povo brasileiro. E onde esse sujeito histórico entra nessa narrativa? Curiosamente, houve quem dissesse e quem acreditasse que “o povo assistiu bestializado à proclamação da República”. Além de não entrar, o povo é visto com uma massa uniforme. Essa imagem ganha mais força quando as projeções se lançam às populações negras, reduzidas à imagem de recém-libertos que não sabiam o que fazer com a liberdade.


O costume de apagar gente negra da história fez com que, por muito tempo, esse enquadramento fosse o único e o 15 de Novembro fosse oportunidade apenas de exaltar ou repelir a data cívica protagonizada por militares e escravistas brancos. Todavia, o contato com documentos negligenciados nos permite ampliar as leituras dessa efeméride e perceber que o povo, em sua diversidade, nutriu expectativas, bem como protestou contra os sentidos que a República adquiria no início e mais adiante.


Este trecho do O Progresso, segundo jornal da imprensa negra paulista, publicado em 1899, pode levar nossa conversa sobre História do Brasil a lugares pouco frequentados:

 

 

  Proclamou-se a República, o governo da igualdade, da fraternidade e [...] liberdades. No movimento republicano, contavam-se muitos pretos e mulatos (que vêm a dar no mesmo) que prestavam e prestam serviços inolvidáveis ao novo regime.

Esperávamos nós, os negros, que, finalmente, ia desaparecer para sempre de nossa pátria o estúpido preconceito e que os brancos, empunhando a bandeira da igualdade e fraternidade, entrassem em franco convívio com os pretos [...]. Qual não foi, porém a nossa decepção ao vermos que o idiota preconceito em vez de diminuir cresce.

 

 

Então, que me diz?

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