Andrea Barretto Motoyama
As últimas décadas presenciaram inúmeros avanços no combate ao câncer, seja ele na fase de diagnóstico, tratamento ou prognóstico. Sem dúvida, o progresso vem sendo construído com auxílio de Genética Molecular, Biologia Celular e Biotecnologia para que seja possível realizar (ainda que em parte) a “Medicina de Precisão”, na qual o tratamento oferecido é individualizado para as características de cada paciente/tumor.
Já disponível há 20 anos, o teste de imuno-histoquímica, realizado na peça de biópsia de câncer de mama, permite detectar a presença alterada de determinados receptores (receptor HER2 e receptores hormonais). Tal teste tem valor diagnóstico e prognóstico, já que define não apenas o tipo e o grau de agressividade do tumor, mas também o tratamento medicamentoso adequado a ser adotado. Outros tipos tumorais também se beneficiam, com prognóstico e tratamentos específicos, do conhecimento molecular da alteração ali presente, como no caso de algumas leucemias (presença de alterações cromossômicas, como as translocações t(9;22) e t(4;11)), e câncer de pulmão (com a expressão EGFR, ALK, ROS). Os exemplos são inúmeros.
Os medicamentos “alvo-dirigidos”, ou seja, anticorpos monoclonais (“-mabes”) e as pequenas moléculas inibidoras (“-ibes”) em uso em Oncologia, trouxeram considerável ganho clínico e assim cresceram numericamente. Os “mabes” são fármacos altamente seletivos, eficazes e de poucos efeitos adversos. São exemplos: trastuzumabe para câncer de mama, bevacizumabe para vários tipos de tumores avançados e rituximabe para alguns tipos de linfomas e leucemias. São os “mabes” ipilimumabe e nivolumabe que efetuam a imunoterapia, ou, em termos muito simplificados, “mantêm o sistema imune do próprio paciente combatendo o câncer”. O imatinibe, o primeiro “-ibe” aprovado para uso clínico, modificou o curso natural da leucemia mieloide crônica, para a qual a taxa de mortalidade era cerca de 100% há 50 anos ou mais. Com seu surgimento (final da década de 90), mais de 90% dos pacientes tratados sobrevivem décadas sem progressão da doença, ou seja, alcançam a “cura funcional”. Desde então, o conhecimento molecular permitiu o desenvolvimento de uma infinidade de outros “ibes” (erlotinibe, afatinibe, ponatinibe, ribociclibe, etc) para combater com sucesso diversos tipos de tumorais.
E, o que se pode esperar para os próximos anos?
Novos conceitos embasarão abordagens mais modernas e arrojadas. Se antes a sequência de DNA (nosso “código genético”) parecia ser soberana, hoje se tem que há mais sobre ela do se pensava. Literalmente! A “Epigenética” (“epi-” no sentido de “sobre”), que estuda as modificações que não envolvem troca da sequência de bases no DNA, mas sim, alterações em sua conformação (como acetilação de histonas e metilação de DNA) e que consequentemente, afetam a expressão gênica, tem se mostrado promissora. Fármacos moduladores epigenéticos em uso são inibidores de desacetilação de histonas (as proteínas sobre as quais o DNA “se enovela”), e da metilação de DNA (entenda-se: “interfere com a expressão de genes”), tendo sido aprovados para tipos específicos de linfomas, no primeiro caso, e para algumas leucemias e anemias, no segundo.
Outro novo conceito em prática é a “letalidade sintética”, na qual a inibição combinada de duas ou mais vias intracelulares leva à morte das células tumorais. Por exemplo, alguns tumores de ovário estão correlacionados a mutações no gene BRCA1 e BRCA2 de reparo de DNA. Os medicamentos (ex: olaparibe) que inibem outra enzima de reparo de DNA, a poli-adenosina-ribose-polimerase (PARP), ocasionam a morte seletiva de células tumorais que tem BRCA1/2 mutados e que assim ficam sem alternativa de “recuperação” ou de “escape” dos danos ao DNA. Na prática, o uso desses inibidores aumentou o tempo de sobrevida livre de doença de pacientes com câncer de ovário avançado e a possibilidade de uso em outros tipos tumorais tem sido investigada.
Por fim, mas de forma não menos importante, tem-se a implementação das diversas técnicas de “Biópsia Líquida”, na qual uma pequena amostra de algum líquido corporal (sangue, urina, saliva, líquor ou sêmen) é utilizada para a detecção da presença de “marcadores” alterados no câncer. Esses marcadores, por sua vez, podem ser células tumorais, DNA livre, exossomos – pequenas vesículas que são secretadas na corrente sanguínea pelas células e que podem que carregar tanto ácidos nucleicos como proteínas, e, até mesmo, pequenas sequências de RNA livre. Como a técnica utiliza, na maioria das vezes, líquidos corporais facilmente acessíveis, torna-se possível acompanhar a resposta do paciente em praticamente todos os estágios de tratamento e no pós-tratamento. Quaisquer mínimas alterações podem ser percebidas no sangue, e assim, evitar a recidiva, antes mesmo que ela se manifeste clinicamente. O uso de DNA na biópsia líquida já está ocorrendo no mundo, porém, devido aos custos, no Brasil está mais restrito à pesquisa, ainda que possa vir a ser implementado em futuro próximo (alguns centros clínicos de forte tradição de pesquisa já o realizam, ainda que não rotineiramente). O uso de células tumorais circulantes (CTCs) mostrou-se mais desafiador, considerando a heterogeneidade intra- e intertumoral/ interpessoal. Porém, para casos específicos (p ex., tumores metastáticos de mama, próstata e colo-retal), uma técnica baseada em CTCs já foi aprovada pela agência regulatória americana FDA para prognóstico. Já o uso de diferentes tipos de RNA se encontra majoritariamente em pesquisa, porém, como no passado, ela poderá levar à descoberta de novas vias alteradas no câncer, que por sua vez podem elucidar novos alvos, e abrir novas perspectivas.
Assim, vivemos um momento tanto desafiador quanto belo. Desafiador, porque, além de entender as vias de sinalização celulares, as alterações moleculares do câncer, é preciso inovar com técnicas que sejam viáveis, aplicáveis e custo-efetivas, sobretudo em um País continental e desigual como o nosso. E, para tipos tumorais mais raros, ou mais silenciosos, o desafio apresenta-se ainda maior, pela escassez de amostras e até mesmo de ensaios clínicos robustos. Por outro lado, é encantador ver que mudamos o paradigma de “câncer = sentença de morte” para “câncer, um inimigo passível de ser domado, se suficientemente conhecido”. E, para a geração desse conhecimento é que seguimos trabalhando!
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