OPINIÃO

Juliana Braz Dias é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e coordenadora do Ecoa – Laboratório de Etnologia em Contextos Africanos (PPGAS/UnB).

Juliana Braz Dias



Nelson Mandela foi seguramente um dos principais líderes do século XX. Talvez menos presente em nossa memória esteja a história por trás do vencedor do Prêmio Nobel da Paz. O Apartheid, regime de segregação racial instaurado na África do Sul em 1948, foi uma experiência terrivelmente desumana que precisa ser lembrada e tomada como fonte de aprendizado.

Em 17 de março de 1992, há exatos 31 anos, o então presidente da África do Sul, F. W. de Klerk, realizou um referendo para consultar a população sobre o fim do Apartheid. Os eleitores, limitados aos sul-africanos brancos, apoiaram majoritariamente o processo de paz. Contudo, a transição para uma sociedade igualitária tem sido muito mais vagarosa do que se sonhou.

O controle político e econômico dos brancos na África Austral é tão antigo quanto a colonização europeia na região. Mas foi no início do século XX que começaram a ser criadas as bases de um programa amplo de segregação racial. Crescia entre os africâneres (sul-africanos descendentes de holandeses) um sentimento nacionalista de base religiosa, que tinha o ideal de pureza racial como uma determinação divina. Politicamente organizados, ganharam as eleições de 1948, consolidando a supremacia branca. O Apartheid foi implementado por meio de uma série de leis, apoiadas por forte aparato coercitivo. Era um programa sistemático de engenharia social, fundado na criação de fronteiras legais entre as raças. Designava o pertencimento racial de cada pessoa, proibia o sexo e o casamento interraciais, determinava o local de residência conforme critério racial e impedia a livre circulação. Placas com o dizer “Whites Only” (apenas brancos) estavam por todos os lugares, de transportes públicos e parques a restaurantes e escolas. A África do Sul tornou-se uma sociedade em tudo desigual.

O Apartheid só começou a se enfraquecer em 1978, numa crise agravada na década seguinte. Diversos fatores afetaram o regime: uma crescente pressão internacional, recessão econômica interna e resistência da população não branca. Inabaláveis líderes negros – como Oliver Tambo e Walter Sisulu – fomentaram uma cultura de protesto e enfrentamento, mesmo diante da truculência do Estado. A mudança não era mais apenas uma opção. Em 1989, o presidente F. W. de Klerk percebeu a necessidade de dar início a um processo de negociação, tendo como principal interlocutor Nelson Mandela, que havia sido condenado à prisão perpétua. Mandela foi solto em 1990 e as negociações continuaram por dois anos, em meio a tentativas de construir uma sempre frágil confiança mútua. Mesmo após o referendo de 1992, foram inúmeros os conflitos violentos por todo o país. A extensão dessa violência só foi revelada após a mudança de regime, com a instauração de uma Comissão de Verdade e Reconciliação. Mandela assumiu como presidente da África do Sul em 10 de maio de 1994, após eleição com sufrágio universal.

A história do Apartheid, contudo, não terminou ali. A segregação racial não tem mais qualquer base legal. A nova constituição sul-africana é exemplar. Mas o passado está gravado nas mentes e nos corpos. Espaços públicos parecem sustentar invisíveis e eficientes avisos de “Whites Only”. A organização das cidades continua refletindo a antiga designação racial dos espaços urbanos. E a desigualdade atravessa múltiplos domínios, como saúde, educação, acesso a empregos, segurança e bens vitais. Construir um sentido de nação sul-africana ainda é um desafio em meio a tantas diferenças.

Ao mesmo tempo, “a luta continua” – como entoado pela cantora Miriam Makeba. E continua sobretudo nas universidades sul-africanas, em diversas frentes. É amplo o movimento de decolonização do saber. Igualmente revolucionárias têm sido as experiências no campo das artes entre os jovens, que encontram na mistura (de gentes, ideias e estéticas) um caminho para romper com as enferrujadas engrenagens de um mundo dividido, incompatível com a consolidação de uma sociedade democrática e igualitária. Tanto lá quanto aqui. Certamente, temos muito a aprender.

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