OPINIÃO

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela UnB/Universidade de Barcelona.

Berenice Bento



Poema para as crianças do Campo de Refugiados Kara Tepe, em Lesbos (Grécia). Lá, a autora atuou como voluntária, numa cozinha. Nada pôde fotografar – mas sentiu. Eis seu testemunho sobre fome, abandono e violência made in Europe


A criança me entrega uma ficha. Letras e números estão quase ilegíveis. O desgaste fora provocado pelo longo uso? Oito, apenas o número oito. Era essa a quantidade de laranjas que eu deveria entregar-lhe.

Primeira laranja

(Deve ser bonita a imagem toda branca das tendas e das pedras, morrendo no azul turquesa do Mar Mediterrâneo. Do alto, deve ser bonito. Lá do céu, não se verá espaços livres. Tudo deve ser branco).

Segunda laranja

(Quase escapa e cai no chão. A mão que a colhia da minha, não conseguia mantê-la firme. Tento escolher as maiores laranjas para ela, mas é um esforço inútil. As suas miúdas mãos não conseguiriam segurá-las. Lá de cima, não se verá ruas, ou nada que lembre uma cidade. Só uma imagem branca).

Terceira laranja

(Receio que uma das oito marmitas possa se abrir e misturar-se às laranjas. O equilíbrio está difícil. Tento ajudá-la a organizar melhor as frutas e as marmitas, mas a cerca não ajuda. De que parte do mundo veio essa criança?).

Quarta laranja

(Estou de pé; na minha frente, as caixas de laranja. Depois, a cerca alta que nos separa: eu, a cerca e a criança. Ela precisa levantar muito os braços com a sacola, para que eu possa colocar as laranjas. Dentro da sacola de supermercado envelhecida, a comida da família. Atrás da criança, outra cerca. Ela está cercada. E lá fora, os policiais).

Quinta laranja

(Os policiais acariciam suas armas. Parecem ansiosos por usá-las. Eles têm armas. Os outros, que se amontoam na fila naquele curral – os perigosos – têm sacolas velhas e fome. Eu, laranjas e horror).

Sexta laranja

(Olhei nos olhos deles. A fome, ali, é distinta daqueles do curral. Eles têm fome de almas humanas. Devoram-nas com seus olhares malignos. Eles se fazem humanos nutrindo-se da humilhação e desumanização dos seres com sacolas velhas. São famintos e insaciáveis. Não, não era ódio naqueles olhares. Era uma transfusão de humanidade. Tentam encontrar a humanidade que perderam em tempos pretéritos. Talvez em alguma Cruzada. Talvez em alguma colônia. Eu vi a transfusão de humanidade a quatro metros de mim. É um espetáculo tenebroso).

Sétima laranja

(Quem pariu aqueles seres vestidos de armas e preto, com peles brancas? Teriam brotado daquelas pedras brancas que cobriam o campo? São áridos e duros como suas mães-pedras-brancas).

Oitava laranja

(A criança, com seu sorriso de dentes de leite, me olha e ensaia um: thank you. Desaparece naqueles espaços estreitos de tendas e pedras brancas. Cada mão segura uma alça da sacola. Seu corpo busca o equilibro. Treme. E eu tremo com ela).

 

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Publicado originalmente no portal Outras Palavras em 13/06/23.

 

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