OPINIÃO

Paulo José Cunha é professor da UnB, escritor e jornalista.

Paulo José Cunha

 

O Brasil não se livrará tão cedo da ameaça golpista dos quartéis se o conteúdo curricular e doutrinário ensinado no dia-a-dia das casernas não passar por uma profunda reforma. Reforma capaz de redefinir conceitos fundamentais como o papel das forças armadas, bem como extinguir a ideia arraigada há décadas – talvez séculos – da existência de um “inimigo interno” sempre identificado com o que se convencionou chamar de “ameaça comunista”, a qual justificaria o uso da força e de meios heterodoxos radicais e criminosos como torturas, prisões, execuções ou “sumiços” de opositores.

 

O fim do ciclo ditatorial-militar iniciado em 1964 não se fez acompanhar da necessária reforma dos conteúdos curriculares e doutrinários acima mencionados. Como já não tinha ocorrido com o fim da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1945. Pelo contrário, e como sempre vem acontecendo ao longo da história, a saída tem sido a contemporização, tal como ficou claro na Lei da Anistia, que só adquiriu condições políticas de ser aprovada pelo Congresso com a condição de ser “recíproca”, ou seja, blindar os militares envolvidos em crimes políticos como tortura, sequestro, desaparições forçadas e assassinatos contra os chamados “subversivos”, como se convencionou chamar os que se insurgiam contra a ditadura. Ou seja: a Lei da Anistia funcionou como um fechar de olhos para todas as atrocidades cometidas até 1985, quando o texto foi votado. Tudo em conformidade com o lema defendido pelo penúltimo ditador de plantão, o General Ernesto Geisel, que concordava com a abertura, mas desde que ela fosse “lenta, gradual e segura”. De 1964 até 1985 pelo menos 434 opositores do regime de exceção foram mortos ou considerados “desaparecidos”. Sem falar nos 20 mil torturados ao longo do período.

 

Neste exato momento, o país assiste ao mesmo filme: na intimidade das casernas cuida-se de evitar a todo custo a punição dos militares que participaram direta ou indiretamente dos atos golpistas de 8 de janeiro. E a razão é precisamente a mesma que vem justificando a leniência com que seguidos governos tratam a instituição militar, que continua a ser identificado como um “poder” e não se ensina nas escolas militares que seus integrantes não são investidos de poder algum. São, apenas e exclusivamente, funcionários públicos fardados. Como historicamente as forças armadas foram identificadas como um “poder moderador” ou como “anjos da guarda”, e essas supostas destinações são repetidas e reafirmadas nos centos de formação e nas ordens do dia lidas nos feriados nacionais, nada se altera. E, com ou sem trocadilhos, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. (Só a título de curiosidade, a frase teve origem em Portugal, ao tempo da primeira invasão francesa, quando o general francês Junnot instalou seu quartel em Abrantes. Como ninguém fazia nada para se opor a Junnot, nem o Regente D. João VI tomava qualquer medida que evitasse o avanço das tropas francesas em direção a Lisboa, toda vez que alguém perguntava como estava a situação a frase era repetida). Fecha parêntese.

 

Em recente entrevista ao Correio Braziliense, o historiador e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis. Ele é autor de obras fundamentais para a compreensão das ditaduras brasileiras – Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, Ditadura e Democracia no Brasil e A Ditadura que mudou o Brasil . E chamou a atenção para a necessidade de se parar de “passar o pano” e se enfrentar a questão da reformulação dos conteúdos e da doutrina ensinada nos quartéis, sob pena de continuarmos a repetir indefinidamente os mesmos erros. “Do que precisamos é de mudanças qualitativas na formação dos militares, nas academias militares, nos cursos de aperfeiçoamento de oficiais e na Escola Superior de Guerra (ESG). Trata-se de repensar o papel das Formas Armadas no contexto democrático, formulando uma nova doutrina, superando-se as tradições e os cacoetes da guerra fria e do “inimigo interno”.

 

Sim, foi ótima a decisão do Presidente Lula de desestimular as escolas cívico-militares, até porque uma pesquisa encomendada pelo Cenpec e pela Ação Educativa comprovou que 72% dos entrevistados confiam mais em professores do que em militares para trabalhar em escolas. Mas o buraco é bem mais embaixo. Lula deveria, sim, incluir entre seus objetivos na presidência uma mudança profunda na formação dos militares brasileiros, com a mira apontada lá para o futuro. E desde logo incentivar os debates e incluir o tema entre suas prioridades. Não se trata de revanchismo, que fique claro. Mas de se cortar o golpismo pela raiz, reposicionando os militares dentro de suas funções de funcionários públicos fardados a quem cabe a nobre missão de defender a democracia, e não sufocá-la em nome de uma doutrina assentada nos princípios da extrema direita.

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