OPINIÃO

Antenor Ferreira Corrêa é professor do Departamento de Música da UnB. Pesquisador nas áreas de etnomusicologia, música e imagem. Coordenador do MediaLab-UnB e do podcast Arte Análise.

Antenor Ferreira Corrêa

 

“dedico essas palavras ao meu herói Wilson das Neves (1936-2017)”  

 

O samba é nosso dom! Dádiva polifônica para um povo plural. Essa polissemia nasce na própria definição do termo: semba, movimento coreográfico no qual os dançarinos batem umbigos. Umbigada como metáfora do ventre que gesta e gera a multiplicidade de gêneros musicais nascidos no Brasil. Seja de breque, de partido alto, de roda, de parelha, de lenço, cabula, misturado com rock, funk, jazz e reggae, samba é maior que qualquer definição. Samba é símbolo histórico que ressoa a resistência cultural, as raízes religiosas africanas e as formas de luta contra discriminação racial e segregação social. 

 

Desde Pelo Telefone (creditado como o primeiro samba gravado em disco), é possível identificar a polissemia inerente ao gênero. Uma criação coletiva (da qual teriam participado Donga, Sinhô, Pixinguinha, Caninha, entre outros), registrada posteriormente em nome de Donga e Mauro de Almeida, carrega características do modo de ser brasileiro. Já começa por nomear os compositores pelos seus apelidos, mostrando nossa aversão aos sobrenomes e formalidades. A controvérsia segue pelo fato de os próprios autores não concordarem se se tratava mesmo de um samba. Soma-se ainda o próprio local de nascimento da obra: a casa de Tia Ciata na Pequena África (“tem mais samba no porto que na vela”), símbolo de congregação étnica, religiosa, musical, gastronômica, de liderança feminina e, sobretudo, de solidariedade social. 

 

Pelo Telefone espelha nossa pluralidade. Explicita o jeito irônico e bem-humorado ao zombar da corrupção e conivência policial, de provocar e reverenciar os amigos nas canções, o modo malandro de driblar convenções, transgredir regras e de apropriar do nosso folclore. Evidencia a miscigenação musical no “amaxixamento” da polca, na interpretação meio “encasacada” do cantor Bahiano e na supressão (mesmo justificada pela limitação tecnológica da época) dos instrumentos de percussão, característicos dos batuques, por outros harmônicos e melódicos mais próximos da música urbana do período. 

 

Não bastasse tal polifonia, particularmente penso que samba é a epitome da epistemologia popular. Na impossibilidade de acesso à educação, a população de baixa renda substituiu a escola formal pela oralidade. O gênero incorporou, assim, sabedoria popular e formas de ascese a qualquer tipo de conhecimento, pois um elemento diferencial dentre este e outros estilos musicais é a capacidade de o samba discorrer em sua poesia sobre todos os temas. O sambista, enquanto cronista, observa a possibilidade de se “formar sem ter ensino, só de ouvir seu Marcelino no botequim filosofar”, e assim “ganha seu diploma nas esquinas”, já que o “samba é magistério” e permite até “pós-graduação lá pelo Império”. Percebe-se, portanto, “desde que o samba é samba”, era já metodologia descolonial. E curiosamente notamos que o descobrimento do Brasil por outros países muito se deveu ao samba que Carmen Miranda e o Bando da Lua levaram à América do Norte ou que a bossa-nova mostrou aos europeus, nórdicos e asiáticos. Esse foi o primeiro movimento de internacionalização que chegaria até Marte. 

O dia do samba não celebra, portanto, somente o tombamento de um gênero já parido como autêntico patrimônio público. Outrossim, comemora a nossa diversidade como motivo para confraternização e não de separação. O ecletismo do samba ressoa nas salas de aula da vida, porque “samba é ciência e, com consciência, é só ter paciência” que se chega lá. E se chega aonde? Em um mundo igualitário que “aprende com a diferença” e festeja o conhecimento. Isso porque “a sabedoria é um mistério, pois tem vez que ela prefere um compositor popular”.

 

Já que “tem mais samba no encontro que na espera”, melhor “deixar as mágoas para trás” para comemorar aquele que não é somente a voz do morro, mas o coro do país inteiro que esquenta os pandeiros. Depois de 127 anos “a medalha que o samba tem para mostrar é a lama nos sapatos”, acumulada na longa jornada por caminhos árduos rumo à apoteose vitoriosa de um gênero musical brasileiro, antes até proibido, depois censurado e hoje síntese da diversidade nacional. “Que tal um samba?”

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