Em 29 de janeiro, comemora-se o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A referência surgiu em 2004, após o lançamento de uma campanha contra a transfobia promovida pelo Ministério da Saúde. Desde então, a data ilustra o movimento de luta pela garantia de direitos e reconhecimento de identidade. Em apoio à causa, a fachada do prédio da Reitoria da UnB tem sido iluminada pelas cores azul e rosa, presentes na bandeira do movimento trans. Até terça-feira (31), um exemplar da bandeira estará estendido na entrada da Reitoria, enquanto outro percorrerá os campi de Ceilândia, Gama e Planaltina. Além disso, o ICC Sul e o saguão da Reitoria sediam a exposição de fotos Por uma UnB TRANSformadora.
Mas as atuações da UnB acerca do assunto não estão restritas ao período comemorativo. A Diretoria da Diversidade (DIV/DAC) promove debates para elaborar uma resolução sobre o uso do nome social. A expectativa é de que, com o documento aprovado, estudantes trans possam utilizar o nome pelo qual se sintam representados. Hoje, o nome social já pode ser adotado na Universidade mediante solicitação, mas ainda não está institucionalizado.
“Construímos a minuta do nome social em parceria com as lideranças de coletivos trans. Ela será entregue ao Decanato de Assuntos Comunitários e encaminhada para o Conselho Universitário. Esperamos que seja aprovada até março”, indica Susana Xavier, diretora da Diversidade da UnB e mãe de uma mulher trans.
O uso do nome social se baseia em valores defendidos pela Constituição Federal de 1988, que preveem a dignidade da pessoa humana, a promoção do bem de todos – sem preconceito – e a igualdade de todos perante a lei, sem distinção. O tema é regulado pelo Decreto nº 8.727/16.
"Muitos alunos trans, às vezes, são reprovados em matérias por transfobia ou porque o docente não associa o nome de registro ao social. Por isso essa política é importante. A UnB assumiu o compromisso institucional de lutar contra a transfobia por meio de uma resolução aprovada na Câmara de Assuntos Comunitários, e é preciso entender que o nome social é um dos respeitos aos direitos fundamentais", afirma a professora do Instituto de Psicologia Tatiana Lionço.
“Ser chamado pelo nome social é mais uma vitória para a pessoa trans, assim como cada nova transformação que a aproxime mais do que pretende ser. Isso a deixa mais confortável para se expressar”, afirma Gabriel Graça, homem trans e professor da Faculdade de Medicina. “O nome traz um efeito emocional muito grande. Eu já consegui a retificação do meu nome de registro e sei o quanto é importante”, conta a travesti Aria Rita, estudante de Música.
Para a retificação do nome de registro é necessário um processo judicial, que exige laudo endocrinológico ou psicológico e psicossocial indicando que a pessoa tem desconforto com o nome e o gênero a ela atribuídos.
Situação de desconforto, preconceito, rejeição familiar e até mesmo violência são questões presentes no universo desses indivíduos que ainda buscam ter visibilidade. Em 2016, a Rede Trans Brasil compilou 150 notícias de assassinatos de pessoas trans veiculadas na mídia. A Secretaria de Saúde do Distrito Federal realizou 827 atendimentos a pessoas trans em 2016. Desses, 758 estavam relacionados à transfobia.
Para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Trans, a Secretaria de Comunicação da UnB ouviu estudantes e especialistas imersos na temática, que contaram as experiências de quem ainda luta para ter seus direitos plenamente reconhecidos.
COMPREENSÃO – Para entender o significado da definição de pessoa trans, é necessário desconstruir o preconceito ligado à vivência desses indivíduos. Trans é um termo que designa pessoas travestis, transexuais e transgêneros. “Sou um homem trans, e isso significa que eu não me identifico com o gênero feminino que me foi socialmente atribuído como consequência dos meus genitais, e, sim, como homem”, explica o estudante de Administração Gabriel Coelho.
"O Estado trabalha com essa definição de travesti e transexual, mas, para mim, é um conceito que independe da vontade de transformar o corpo por meio de cirurgia. Sou travesti e isso é um gênero a mais, que me possibilita ser o que sou”, expõe Maria Leo Araruna, estudante de Direito.
Taya Carneiro, estudante da pós-graduação em Comunicação, considera que travesti é uma identidade de gênero como qualquer outra, mas explica que não se reconhece em nenhuma definição. “Não preciso de rótulos.”
“Uma travesti é o homem que se vê como mulher, se expressa como mulher para a sociedade, mas não tem rejeição ao seu órgão sexual. Independentemente da genitália, ela se reconhece como mulher”, pondera a gerente da Diversidade do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), Ana Carolina Silvério. Ela também considera que transexuais e transgêneros são termos ainda não pacificados no contexto LGBT e que não são expressões sinônimas.
“As pessoas transgêneros estão nesse trânsito entre os dois gêneros. Elas podem não se reconhecer como mulher, não se reconhecer como homem, não se reconhecer em nenhum dos gêneros ou se reconhecer nos dois gêneros”, esclarece. “Já as pessoas transexuais não se reconhecem com o gênero atribuído em seu nascimento e são aquelas que desejam passar pelo processo de mudança de gênero, não necessariamente até a cirurgia de transgenitalização, mas desejam o tratamento hormonal, por exemplo”, defende Ana Carolina Silvério.
No entendimento de Gabriel Graça, homem trans e professor da Faculdade de Medicina, uma pessoa trans “corresponde a alguém que tem disforia [sentimento de desconforto ou mal-estar] de gênero, considerada pela Organização Mundial da Saúde como um transtorno que leva a pessoa a não se sentir confortável com o gênero que lhe foi designado socialmente”.
“A aparente confusão entre conceituações decorre de uma preocupação dos movimentos trans em desmistificar a obrigatoriedade imposta às pessoas em se enquadrar como homem masculino ou mulher feminina”, esclarece a coordenadora da Diversidade Sexual da DIV, Célia Selem. “Esses termos surgem ao longo da história, em momentos em que as definições não dão mais conta das realidades, e são pensados também para provocar questionamentos e reflexões da sociedade.”
PATOLOGIZAÇÃO – “Como é algo que limita a expressão e a plena vivência do indivíduo, é considerado um problema de saúde, que seria curado pela cirurgia de transgenitalização”, defende Gabriel Graça.
O conceito ainda é motivo de muita discordância. “Não me sinto bem em precisar dizer que tenho uma doença para ter acesso à assistência. Para cada um, a experiência dessa identificação de gênero é única e subjetiva. Então, para mim, não é possível dizer que são sintomas”, afirma Saulo Oliveira, homem trans e estudante de Geologia.
“Também não me agrada a ideia, mas tento ficar focado no meu objetivo”, completa Théo Flores, homem trans e estudante de História.
O professor de Medicina Gabriel Graça, no entanto, diz que está em tratamento e que vai se considerar curado quando concluir seu processo de transgenitalização. "O meu desconforto com a incompatibilidade entre corpo e identidade de gênero vem diminuindo significativamente com o avanço do tratamento. Tanto que a conclusão da designação cirúrgica irá eliminar completamente o meu desconforto e, nesse sentido, a minha disforia de gênero", diz.
“Eu prefiro que não conste o CID [Classificação Internacional de Doenças] nos meus laudos médicos. Isso é um reflexo da patologização do início da regulamentação. Não há mais espaço para essa ideia. Em algum momento isso será revisto, assim como foi com a homossexualidade”, opina a travesti Aria Rita, estudante de Música.
DESESTIGMATIZAÇÃO – A identidade de gênero não necessariamente está ligada à orientação sexual do indivíduo, ao contrário do que muitos pensam. “Uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino, mas hoje é uma mulher trans, pode se sentir atraída por um indivíduo do sexo masculino – trans ou não – e assim será heterossexual por sentir desejo e afeição pelo gênero oposto ao seu”, explica a gerente do Creas, Ana Carolina Silvério. “Além desse lugar comum, há a ideia de que toda travesti é garota de programa, o que não é verdade. São pessoas como todas as outras, com infinitas possibilidades. Esse pensamento perpetua o preconceito atribuído ao grupo”, pondera.
“Também não se pode colocar, como condição para o respeito, que a pessoa não seja profissional do sexo. O preconceito é perverso porque alimenta o próprio preconceito. Se alguém escolheu essa vida – que traz renda –, é porque foi expulsa de ambientes como escolas e universidades”, defende a professora do Instituto de Psicologia Tatiana Lionço.
Rosa Melo, especialista em religião e saúde do Departamento de Antropologia, considera que a teoria separa o gênero da genitália, uma vez que, para a Antropologia, o gênero não é condicionado pelo sexo. "Todas as expectativas de trejeitos e características psíquicas e sociais surgem a partir da designação de gênero. A antropologia enxerga essas expressões de forma separada, apesar de a nossa sociedade uni-las muitas vezes”, explica.
“Existe uma potencialidade educadora nesse debate promovido pelos coletivos dos movimentos LGBT”, opina a professora.
HORMONIZAÇÃO – A partir do momento em que a pessoa trans decide começar a hormonização, é necessário acompanhamento de um endocrinologista, que ajustará a dose para o que for adequado àquele indivíduo. O profissional irá realizar controles de taxas hormonais no sangue periodicamente e decidir a melhor maneira de administração do medicamento, uma vez que a aplicação incorreta pode levar a sérios riscos, como trombose. Além disso, são essenciais os profissionais de Psiquiatria e Psicologia. “É uma população muito invisibilizada e que precisa lidar com uma carga de preconceito altíssima. Por isso é tão importante ter acompanhamento das questões decorrentes do processo”, explica Célia Selem.
Aria Rita conta que, ao começar a hormonização, sentiu os efeitos emocionais muito rápido. “Começou com cerca de dois meses e durou até os cinco, parecia uma adolescente de novo. Meus seios começaram a aparecer com dois meses, mas isso varia de pessoa para pessoa.”
O professor de Medicina Gabriel Graça explica que o tratamento hormonal começa após a pessoa decidir explicitar sua decisão. “O indivíduo passa por uma nova puberdade. Ele vai ter todos os sintomas que uma pessoa do sexo que ele pretende teve durante a adolescência. A barba vai aparecer e a voz engrossar, ou os seios vão crescer e a gordura corporal vai se acumular em locais associados ao sexo feminino”, detalha. “É importante ter acompanhamento psicológico porque uma das etapas do reconhecimento do gênero é social. Eu faço psicoterapia há muito anos e sei que isso é essencial.”
A questão emocional passa a ser, assim como na adolescência, algo difícil, já que a mudança corporal também gera mudanças psicológicas e cognitivas. “A maioria sofre rejeição, principalmente da família. Temos muitos casos de transtorno de ansiedade e depressão com ideação suicida, principalmente no momento de transição”, esclarece Isabel Amora, psicóloga clínica do HUB.
“As pessoas não deveriam ter que estar preparadas para isso, era para ser algo mais natural”, defende Taya Carneiro. “Ter pessoas trans perto de mim é bom, porque posso confiar no olhar do outro”, diz Maria Leo. Para Gabriel Coelho, "um corpo é um corpo, não é preciso ter vergonha".
ASSISTÊNCIA – Na UnB, é possível buscar apoio na Diretoria da Diversidade, que fica na sala AT 199/7, no ICC Sul. O Hospital Universitário também oferece atendimento especializado da área de Psicologia para a população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intergênero) e está em processo de planejamento, junto à direção, para montar um ambulatório completo, que ofereça, inclusive, cirurgias. “Como alguns tratamentos, como a cirurgia de transição de homem para mulher, são experimentais, só podem ser realizados em hospitais universitários e não há nenhum no Centro-Oeste que ofereça essa possibilidade”, diz Isabel Amora.
Para ser atendido, é necessário encaminhar para o e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. o nome social, a idade e o telefone. Para os menores de idade, é preciso, ainda, o acompanhamento e autorização dos pais.
O Creas tem convênio com a Defensoria Pública da União e Ministério Público da União. Ele encaminha para aconselhamento a pessoa que necessita de assistência para fazer a mudança do nome civil. Além disso, oferece acompanhamento psicossocial e auxílio às pessoas em situação de vulnerabilidade após diagnóstico da equipe, que irá averiguar as condições em que elas se encontram.
Para ser atendido no Centro, é necessário CPF e RG. No caso de menores, é preciso ir acompanhado de um responsável. As marcações podem ser feitas pelo telefone 3224 4898, presencialmente ou por encaminhamento de outros centros e órgãos conveniados.