“Vocês podiam estar ficando chapados, mas preferiram estar aqui comigo.” Polêmica como quem a proferiu, a fala de abertura do professor Carl Hart na palestra Um novo olhar sobre as drogas, nesta terça-feira (24), manteve o público atento. A atividade integra a programação da XVII Semana Universitária (SemUni) da UnB.
O neurocientista, professor e pesquisador da Universidade de Columbia (EUA) trouxe aos estudantes, professores, técnicos e interessados em geral que lotaram os anfiteatros 9 – local da palestra – e 10 – onde o evento foi exibido em tempo real –, experiências pessoais aliadas a posicionamentos políticos e científicos para abordar o assunto.
“Eu já vendi drogas e, quando comecei a estudá-las, pensei que resolvendo o problema do vício poderia solucionar todas as suas consequências, que afetavam a comunidade em que cresci." Hart foi criado em uma comunidade de baixa renda em Miami e acreditava que as drogas eram a razão pela qual havia crime e pobreza. “Esse pensamento foi o que me moveu no início, mas essa premissa é errada”, afirmou.
O cientista descreveu uma pesquisa em que ratos eram colocados em uma gaiola com nada mais do que uma alavanca para apertar. Ao realizar esta ação, os animais recebiam cocaína. Foi verificado que eles escolhiam a droga continuamente, mesmo quando já estavam em estado de inanição.
“O que não consideramos era que eles tinham apenas a alavanca à disposição", observou Hart. "Quando inserimos outros itens no ambiente, que produziam estímulos na parte do cérebro responsável pela recompensa, eles já não se interessavam tanto pela alavanca”, esclarece.
A ideia começou a movê-lo. Enquanto escrevia o best seller Um preço muito alto, Hart levou em consideração o que chamou de "fracassos na tentativa de curar o vício". Motivado pelos trabalhos com ratos de laboratório, ele passou a refletir sobre a perpetuação de conceitos rasos sobre drogas. De acordo com o pesquisador, o erro começa em assumir como verdadeira a premissa de que a maioria dos usuários de drogas é viciada, e que as substâncias são perigosas e imprevisíveis.
Um dos experimentos com humanos que Hart utilizou como exemplo detalha a possibilidade de um usuário em situação de vulnerabilidade escolher entre uma porção de metanfetamina e vinte dólares. "Todos escolheram o dinheiro", diz ele. “Isso demonstra a capacidade desses usuários em tomarem decisões racionais, não somente alimentar o vício”, explica. Ele acrescenta que os vinte dólares só seriam entregues ao fim do experimento. Mesmo assim, a recompensa financeira se sobrepôs ao uso imediato de drogas.
“Algo entre 75% e 90% dos usuários não são viciados. O uso de drogas não é como uma doença neurológica, que é irreversível, e também não precisa ser fatal”, defendeu.
ESTIGMATIZAÇÃO – Após a apresentação dos dados, o professor Carl Hart defendeu a abordagem humana e comportamental do uso de drogas. Como exercício, ele propôs aos presentes que questionassem os estereótipos existentes em torno de usuários de drogas. “O usuário é uma pessoa como eu, que trabalha, paga seus impostos e, em média, é branco. Mas o que temos na cabeça é a imagem de um morador de periferia, pobre e negro”, expôs.
De acordo com o professor, a estigmatização tira da sociedade a ideia de que o usuário médio está entre nós e não nas ruas e periferias. “Isso leva à perseguição da população em vulnerabilidade socioeconômica e políticas higienistas, em vez de proposição de tratamentos humanizados e discussão do real problema, que não são as drogas”, enfatizou. “Uma vez que entendamos o que de fato acontece com o uso de drogas, poderemos aceitá-las e não retirar de adultos sua autonomia para tomar decisões conscientes e informadas sobre precauções e consequências do uso dessas substâncias."
POLÍTICAS – Hart defende que a política de guerra contra as drogas em curso, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, move uma indústria e promove empregos. Para o pesquisador, as pessoas que perseguem e prendem os usuários o fazem sem refletir, seguindo ordens. “Mas a reflexão é essencial”, defendeu.
A descriminalização das drogas também poderia gerar empregos, na visão do professor. “Ao aceitar a realidade de que uma parcela considerável da população usa entorpecentes, poderíamos ter controle de qualidade dessas substâncias.”
O pesquisador lembrou aos presentes que, durante a época de lei seca nos Estados Unidos – período entre as décadas de 1920 e 1930 em que era proibido fabricar, transportar e vender bebidas alcoólicas –, muitas pessoas morriam por intoxicação, uma vez que as bebidas era contrabandeadas e não se sabia o que elas continham. Para ele, é o mesmo que acontece hoje com as drogas.
INTERAÇÃO – Após a exposição, houve espaço para perguntas da plateia. Os questionamentos abordaram, principalmente, temas que não foram discutidos. A reitora Márcia Abrahão mostrou-se satisfeita ao ver a participação do público no anfiteatro lotado.
"O papel da universidade é fazer com que busquemos soluções para os problemas do nosso país. Queremos que nossos estudantes sejam protagonistas no debate e na busca de soluções", disse.
O mestrando em Ciências Sociais Murilo Mangabeira questionou o palestrante sobre o que pode ser feito a respeito da marginalização do usuário de drogas.
Hart disse que é preciso que os usuários médios se revelem. “Para mudar esse cenário, temos que convencer essas pessoas a se mostrarem. Assim, estamos educando e sendo ativos na mudança do que tem sido hoje, de fato, uma guerra às pessoas pobres, pardas e negras." No período da tarde, o professor convidado participou de uma mesa cujo tema era Genocídio da Juventude Negra, no auditório da Faculdade de Direito (FD).
"Já pensava de uma maneira parecida à do Carl Hart, e creio que, com o que foi debatido aqui hoje, abrem-se novas perspectivas para aceitarmos que o resgate do usuário não é o melhor caminho. Esse tratamento precisa ser inserido no ambiente de convívio do jovem, público com quem trabalho", diz a assistente social Danielle Sanchez.
Quando perguntado pelo estudante de Psicologia Kelvis Ribeiro sobre a participação de religiosos em tratamentos, Hart respondeu que não acredita que eles deveriam ser responsáveis pelo processo. “Não estou buscando ofender as crenças de ninguém, mas eles estudaram religião, não psicologia e neurociência”, disse, defendendo o saber e o fazer científicos.
>> Confira a íntegra da palestra, que foi transmitida ao vivo pelo Facebook da UnBTV