DIVERSIDADE

Eliane Boroponepa defendeu tese sobre transformações na educação em sua comunidade e a importância da escola indígena para preservação cultural

 

Professora em escola indígena nas terras umutina, Eliane Boroponepa compartilha suas experiências acadêmicas com estudantes. Foto: Arquivo pessoal

 

Oriunda da terra indígena umutina, próxima à cidade de Barra dos Bugres, no estado do Mato Grosso, Eliane Boroponepa Monzilar, 40 anos, não teve a oportunidade de estudar em escola indígena durante a infância. Cresceu em meio a referências escolares de vivências que não eram as suas. “Só fui me entender enquanto indígena e pertencente a um povo quando ingressei na graduação", conta. "Durante a formação como professora indígena, não só eu como outros colegas fomos cobrados pela nossa identidade. Comecei a procurar saber da minha história, da minha cultura, conversar com os anciãos”, explica a indígena, sobre o momento em que começou a lutar pelas causas de sua etnia.

 

Hoje, Eliane é professora em uma escola de sua comunidade e, em julho de 2019, tornou-se a primeira mulher indígena a concluir doutorado em Antropologia na Universidade de Brasília. Por sua trajetória, sabe da importância da educação pautada nos saberes dos povos tradicionais como instrumento para fortalecer sua cultura, fragilizada após os primeiros contatos com não indígenas, no século XX.

 

“A população umutina foi praticamente exterminada, fisicamente e culturalmente, por todo o processo de colonização”, relata. Registros da década de 1940 sinalizavam a redução da comunidade para apenas 23 membros. Após décadas de lutas em defesa de seu território e sua cultura, cerca de 600 pessoas, de nove grupos indígenas, convivem atualmente na terra Umutina, de onde retiram seu sustento e reiteram os vínculos com suas tradições.

 

Eliane reconhece que muito do processo de manutenção da identidade e da memória de seu povo vem do próprio incentivo dos professores indígenas à valorização dos antigos saberes entre as novas gerações. Essa é uma missão a qual ela tem se dedicado há mais de 15 anos e se interliga a suas experiências na academia. Eliane foi a primeira de sua aldeia a concluir a pós-graduação.

Com o apoio dos anciãos, Eliane ministra aula de campo para incentivar jovens estudantes a conhecer o território umutina. Foto: Arquivo pessoal

 

Antes disso, passou pela licenciatura em Ciências Sociais na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) e fez especialização em Educação Escolar Indígena. Em 2011, tomou ciência, por meio de uma amiga, do processo seletivo para o Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (Mespt) da UnB. Entusiasmada com a possibilidade de conhecer outras culturas indígenas nas aulas de campo, decidiu se inscrever na seleção e foi aprovada.

 

No ambiente acadêmico, percebeu a possibilidade de intensificar a militância em defesa de seu povo e a representatividade de seu lugar de fala. “Na Universidade, não sou somente a Eliane. Represento um povo e isso é uma grande responsabilidade, não só por ser indígena, mas por ser mulher”, compartilha.

 

Durante o mestrado, a pesquisadora propôs-se a incentivar a busca de alternativas que contribuam para a sustentabilidade da aldeia e para reavivar os saberes e fazeres dos umutina. Ela conversou com anciãos e jovens alunos da comunidade para investigar possibilidades de manejo do território que reconstruíssem conhecimentos tradicionais já em esquecimento, como o cuidado da roça. A dissertação transformou-se em um livro, publicado em 2018.

 

APROFUNDAR O CONHECIMENTO – Em 2014, Eliane Boroponepa decidiu dar continuidade à pesquisa ao ingressar no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), um dos primeiros a implementar a política de cotas na UnB. A vaga de Eliane foi preenchida pelo critério de cotas para indígenas.

 

Em sua tese, a indígena agregou suas experiências, desde o processo de escolarização até a trajetória como professora e acadêmica, e apresentou os desafios e avanços da educação indígena na manutenção da cultura Umutina. “O trabalho também traz os saberes e memórias dos anciãos e lideranças, mas principalmente dos indígenas professores, que hoje se tornaram protagonistas de todo esse processo de revitalização e valorização de nossa cultura”, explica.

 

Intitulada Aprender o conhecimento a partir da convivência: uma etnografia indígena da educação e da escola do povo Balatiponé-Umutina, a tese foi defendida no início deste mês. Orientadora da pesquisa, a professora do Departamento de Antropologia Antonádia Borges enxerga no trabalho um marco de resistência. “A tese de Eliane demonstra como a atenção constante do povo balatiponé-umutina ao que pulsa em suas vidas é o antídoto às investidas brutais para seu extermínio, tanto ontem como hoje”, considera.

Durante palestra em escola pública de Tangará da Serra (MT), Eliane (esq.) compartilha saberes sobre a cultura de seu povo. Foto: Arquivo pessoal

 

Ao analisar o histórico de inserção das escolas em sua aldeia, Eliane menciona as mudanças bruscas nas perspectivas pedagógicas ali presentes desde os primeiros contatos com os não indígenas até então. “A princípio, a escola estava no território como uma forma de acabar com essa cultura, porque aprender a ler e escrever é uma forma de integração, de assimilar a cultura indígena à sociedade”, observa.

 

Segundo a pesquisadora, somente na década de 1990 se consolida um novo olhar sobre a educação na comunidade, com a formação dos primeiros docentes indígenas na região. Esses professores passaram a dialogar com lideranças locais e anciãos e a incluir os conhecimentos tradicionais no currículo escolar. “É outro olhar, a partir da concepção indígena que versa a questão da revitalização e do fortalecimento da cultura, dos saberes e fazeres do povo Umutina”, ressalta. 

 

Uma das consequências desse processo é a presença cada vez mais marcante de elementos da cultura umutina no cotidiano de sua população. “Apesar de toda a conjuntura opressora, o povo umutina resistiu. Há pouco mais de dez anos, ele era invisível. Hoje, a comunidade tem uma grande visibilidade a nível local, mas também nacional, mostrando sua dança, sua pintura, seu artesanato e seus cânticos”, comemora a pesquisadora.

 

APRENDIZADOS ENRIQUECEDORES – Em suas vivências acadêmicas, Eliane teve a oportunidade de transitar por diferentes lugares e culturas. No doutorado, fez intercâmbio no Suriname, onde conviveu com os maroons, povos de descendência africana com história similar a dos quilombolas. Também passou um período na Colômbia para conhecer o processo de formação de professores indígenas daquele país, aprendizado que a inspirou no trabalho como educadora em sua comunidade e que também relata em sua tese.

 

Por essas e outras experiências, Eliane expressa seu orgulho pela passagem na Universidade. “Consegui como resistência estar perpassando esse espaço, que é muito sistemático e radical, cobra muito de você. Ao estar na academia, pude dialogar e mostrar que existem outros saberes que a universidade precisa ter conhecimento. Antes, nossos povos eram objetos de pesquisa, hoje podemos nos pesquisar”, celebra.

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