O ambiente urbano, com toda a complexidade na organização, as características e os valores que carrega, oferece possibilidades diversas de ocupação. Uma praça, por exemplo, pode se tornar ponto de encontro entre amigos, local de circulação de pessoas ou de acontecimento de manifestações variadas, desde momentos lúdicos até atos de criminalidade. Entretanto, na comunidade do Vale do Amanhecer, localizada sob o Morro da Capelinha, em Planaltina (DF), os principais relatos de alunos de uma escola pública sobre a apropriação dos espaços na região não eram nada agradáveis.
“Os estudantes tinham um desapreço muito grande pela cidade. Quando trabalhei em uma escola de lá, ouvia dizerem que tinham vergonha de morar no Vale do Amanhecer, tanto pelo aspecto da violência como pela questão religiosa”, declara o professor do Ensino Básico e mestre em Artes, Wellington Oliveira. Segundo ele, além do medo da criminalidade, os alunos sofriam um preconceito muito forte por conta da doutrina religiosa que deu origem à comunidade.
Ao ingressar no Mestrado Profissional em Artes da Universidade de Brasília, Oliveira viu uma perspectiva de transformar a percepção negativa que eles mantinham sobre a cidade por meio do teatro. A ideia resultou em um espetáculo – produto final de sua pesquisa de mestrado – apresentado em julho na comunidade e que será reencenado, a partir de uma adaptação, nesta sexta-feira (21), às 19h30, no espaço Ateliê Aberto, localizado na CR 64 casa 68. Foi dentro de um projeto que desenvolvia em uma escola do Vale do Amanhecer que surgiu o desejo de trabalhar as possibilidades oferecidas pelo território em contextos educativos e teatrais.
Muro de Promessa é o nome da peça, cuja simbologia vem da própria história de formação daquele local. Um muro que delimita a área do complexo religioso do Vale do Amanhecer do restante da comunidade representa para os jovens que ali habitam a separação entre classes sociais, questão colocada em discussão na peça. A dramaturgia também foi concebida em diálogo com reflexões e vivências dos estudantes nos diversos espaços da cidade. Toda a produção do espetáculo foi realizada com recursos de bolsa concedida pela Capes ao professor para realização da pesquisa de mestrado.
PROTAGONISMO – A partir de experiências do Teatro em Comunidade, que busca dar voz à população e à suas histórias, como protagonista da criação teatral, os estudantes foram incentivados, com atividades educativas, a olhar para o ambiente onde vivem, analisar suas transformações e traçar projeções para o futuro.
Oliveira explica que a abordagem pretendida buscou outras possibilidades de reflexão que atravessassem as barreiras das escolas e gerassem reflexo no próprio território. “Começamos a trabalhar na cidade com narrativas e aproximação dos espaços, tentando captar os significados desses territórios, o que eles poderiam dizer sobre a cidade e o que poderiam gerar enquanto material cênico e educativo”, afirma o professor.
As observações resultantes desses exercícios inspiraram os diálogos e a própria concepção da cena teatral, que transita em diversos pontos da comunidade. Preocupações acerca do crescimento da cidade, da perda de vínculos entre a vizinhança, da falta de possibilidades para o desenvolvimento do território e da população e da desesperança quanto aos rumos que o local tomará são externadas na peça pela personagem principal. Representada na figura de uma idosa, a imagem da personagem surgiu durante os exercícios de observação da cidade, realizados com os estudantes.
As ruas se tornam palco da encenação, que convida o público, como participante ativo da peça, a explorar, em um percurso, cada canto da cidade. O ponto de encontro para dar início ao ato cênico é a Praça Solar Médiuns. À medida que a narrativa se desenrola, um trajeto é percorrido pela comunidade e a plateia se depara com locais antes ignorados em suas experiências diárias, em função dos estigmas carregados quanto à criminalidade e violência.
Em uma das cenas, uma praça antes abandonada pelos moradores é ressignificada como ponto de diversão e de encontro entre casais. Em outra, o muro que atravessa a cidade serve como pano de fundo para um momento em que a protagonista se vê diante de seus conflitos internos entre partir para os grandes centros urbanos ou ficar ali para tentar mudar a realidade do local. “É um embate dessa voz que sempre diz que temos que estar no lugar melhor, que temos que ir para onde existe a possibilidade de desenvolvimento, o que acaba silenciando as pessoas que moram nas periferias e alienando-as do seu próprio território”, afirma Oliveira.
Ao final do espetáculo, os atores realizam um debate com a população. “Na verdade, o objetivo maior do teatro em comunidade não é montar o espetáculo. A apresentação é uma desculpa para a promoção do debate, para o encontro da comunidade que não se encontra. É um espaço para projeções e para o desenvolvimento da comunidade”, considera Oliveira.
Estudante de escola pública da região, João Victor Cunha acredita que foi uma oportunidade para que, com a prática teatral, incentivassem os habitantes a repensarem seus vínculos com o meio urbano. “Esse trabalho pode desempenhar uma mudança na forma de pensar e direcionar os pensamentos das pessoas para os pontos e temas importantes de se debater na comunidade”, afirma.
ATELIÊ ABERTO – Toda a pesquisa teatral foi fruto das atividades desenvolvidas no projeto Ateliê Aberto. Foi em uma das escolas do Vale do Amanhecer que, em 2014, o professor Wellington Oliveira deu início à proposta. Um ano depois o projeto saiu dos muros da instituição para se concretizar como um espaço cultural da comunidade. O local funciona aos sábados com atividades abertas aos moradores da região e dos arredores.
Possibilitar o acesso à arte e desenvolver uma perspectiva de teatro que se propõe a tornar a cidade campo de intervenção artística é foco do Ateliê Aberto. “A proposta vem no sentido de tentar trazer um novo olhar para a cidade, tanto ressignificando os espaços e incentivando os estudantes a se apropriarem deles, como também refletindo acerca da própria história e características da cidade”, explica o professor, que utilizou a iniciativa como fonte de pesquisa para sua dissertação.
Para jovens como Guilherme da Silva, estudante de escola pública da comunidade Mestre D’Armas, o Ateliê Aberto incentiva o conhecimento em cada um de habilidades da performance teatral. “O projeto mexeu muito comigo. Eu achava que encenar não era para mim. Mas aí o professor começou a trabalhar comigo com paciência e eu comecei a me modificar. Percebi que todo mundo pode encenar”, alega o estudante.
Os interessados em participar do projeto podem obter mais informações pela fanpage no Facebook.
Veja também o documentário sobre o processo de criação da peça Muro de Promessa e sobre o projeto Ateliê Aberto.