A cada semana, nas tardes de sexta-feira, o Centro Clínico de Ensino Odontológico do Hospital Universitário de Brasília (HUB) recebe pessoas com histórias muito especiais. São pacientes que sofreram alguma lesão ou mutilação na face em decorrência de câncer ou trauma. Na unidade, eles são acolhidos por uma equipe de dentistas e estudantes de Odontologia que, voluntariamente, prestam o serviço de reabilitação protética facial.
É o caso da dona Maria José dos Santos, de 55 anos, que perdeu a visão no olho esquerdo por conta de um quadro de sarampo não tratado. “Durante 20 anos vivi com o olho doente. Não conseguia enxergar”, conta a paciente. Ela relata que teve sua autoestima abalada pelas sequelas da doença. “Meu olho ficou estufado e esbranquiçado. Eu tinha dificuldade para sair na rua porque era muito discriminada."
Há cerca de seis anos, dona Maria precisou passar por uma cirurgia para remover o órgão. O que, a princípio, era uma notícia ruim, para ela significou uma transformação de vida. “O médico me disse que eu seria bem atendida aqui. Ganhei esse olho e minha vida mudou. Hoje vivo muito melhor. Quem não me conhece nem percebe que uso uma prótese”, confidencia a paciente.
REABILITANDO – A Prótese Bucomaxilofacial é uma especialidade da Odontologia voltada para a reabilitação de pessoas com perdas ou malformações na face, maxila e mandíbula. O serviço começou a ser oferecido no HUB em 2005, a partir do voluntariado da dentista Aline Úrsula. “Me especializei em São Paulo. Ao retornar para Brasília constatei que o serviço não era oferecido na rede pública. Então, procurei o HUB e me ofereci para colaborar”, relembra a docente do Departamento de Odontologia da UnB, doutora em prótese dentária.
De lá para cá, a demanda por atendimento cresceu, bem como o número de interessados em contribuir. Para inserir os alunos no atendimento voluntário, em 2010, a iniciativa foi transformada no projeto de extensão Reabilitação Protética de Pacientes com Defeitos Maxilofaciais, vinculado à Faculdade de Ciências da Saúde (FS) da UnB. Hoje, o projeto soma 37 voluntários, entre dentistas e estudantes de Odontologia – inclusive de outras instituições de ensino superior.
"A busca pela prótese é a busca por si mesmo. O paciente deseja não mais ser visto como alguém que perdeu uma parte, mas como o eu completo”, diz Aline Úrsula, sobre a importância da especialidade. Ela explica que a reabilitação protética auxilia o indivíduo no retorno ao convívio e rotina social. “Muitas vezes os pacientes não se queixam de ter perdido olho, nariz ou outro membro. A queixa é não aguentar mais as pessoas olhando de forma diferente”, conta a dentista, que garante ser possível constatar melhora no aspecto psicológico do paciente após o processo.
Além dos benefícios mencionados, a reabilitação tem importante papel funcional. “A prótese nasal, por exemplo, ajuda no direcionamento do ar. Além disso, protege a cavidade evitando deposição de poeira ou colonização por micro-organismos. Tive um paciente que perdeu parte da pirâmide nasal porque deixava a cavidade desprotegida. Após um tempo, foi constatado que havia larvas se proliferando na região”, detalha a dentista.
A especialista menciona, ainda, a importância da prótese para crianças com lesões na região dos olhos. “Quando a criança não utiliza a prótese ocular na fase de crescimento, pode haver deformação no rosto, devido uma diferença de desenvolvimento entre a região saudável e a parte lesionada.” Já a prótese de bochecha auxilia nas funções de fala e mastigação.
MÃOS À OBRA – Todo o trabalho de confecção das próteses é manual. Por isso, além dos conhecimentos especializados – como de anatomia –, é preciso destreza e criatividade. Materiais simples como gesso, silicone, tintas, pincéis, lixas e cartolinas são utilizados no processo.
A maior demanda existente é pela prótese ocular, uma vez que são mais frequentes lesões e traumas nessa região. Essa também é a prótese mais fácil de ser confeccionada. Em média, na terceira consulta o paciente já recebe a peça, feita de resina acrílica após o molde da região, obtido com uso de alginato. Para caracterizar a íris, utiliza-se cartolina e tinta. Por fim, fios de lã vermelha simulam os pequenos vasos sanguíneos típicos da região.
“Eu não conhecia muito o passo a passo da prótese ocular, mas com a orientação da professora Aline a gente logo aprende essas habilidades”, conta o dentista voluntário Augusto Resende, mestrando em Ciências da Saúde na UnB. A primeira prótese ocular confeccionada pelo dentista é a do aposentado Antônio Ramos, de 66 anos, que aprovou o serviço.
“Me sinto bem melhor agora. As pessoas que não me viram antes de perder o olho nem percebem que é prótese. Quem me conhece também achou muito bacana”, conta o paciente, que teve o globo ocular removido após um câncer.
Estudante do sétimo semestre de Odontologia, Lucas Neris participa do projeto há dois anos. Ele conta já ter atendido muitos pacientes desacreditados. “Estavam mutilados há anos, não sabiam o que fazer ou onde procurar ajuda." O universitário destaca que há uma grande demanda pelo serviço na sociedade e que o projeto contribui para que ele seja um profissional capacitado a oferecer o atendimento. "Me sinto realizado em fazer parte desse projeto. O agradecimento que o paciente tem pela gente é algo impossível de descrever", resume.
BARREIRAS – Segundo a professora Aline Úrsula, a especialidade ainda é muito desconhecida. “Frequentemente recebemos pacientes que pensam estar no lugar errado, porque perderam olho ou nariz e foram encaminhados ao dentista”, descreve. Mesmo entre os profissionais de saúde é comum o desconhecimento.
Outro impasse é falta de oferta do serviço na rede de saúde pública. “Já recebemos pacientes de Rondônia, Amazonas e vários outros estados. Eles vêm de tão longe porque não teriam como pagar por uma prótese em um consultório particular”, diz a professora. “Estamos com nossa capacidade máxima de atendimento. Não tenho como supervisionar mais alunos do que o quantitativo atual”, acrescenta.
Por ser voluntário, o projeto também enfrenta obstáculos para se manter. "O HUB fornece parte dos materiais. Contudo, itens mais específicos, como silicone, tinta e resina, são comprados pelos voluntários”, informa a dentista.
De acordo com ela, o Hospital estuda publicar um edital que contemple as demandas do projeto, mas enfrenta limitações orçamentárias.
Outra necessidade dos profissionais é a aquisição de um scanner e de uma impressora 3D, que facilitariam a confecção das próteses. “Além de diminuir o número de sessões clínicas, os procedimentos seriam menos invasivos e não dependeriam da habilidade manual do profissional. Representaria um ganho em todo o processo”, garante Úrsula.
Apesar de existirem, os obstáculos se tornam pequenos diante da dedicação da equipe. “Essa é a minha missão na odontologia. Eu não seria tão realizada profissionalmente se não estivesse envolvida com esse projeto. Realmente quero contribuir para melhorar a qualidade de vida das pessoas", confessa a docente.
SERVIÇO – Para ser atendido na unidade, o paciente deve, obrigatoriamente, ter encaminhamento de alguma unidade pública de saúde do DF com indicação para tratamento com prótese. A marcação das consultas é feita no Centro de Odontologia e Farmácia Escola do HUB. Atualmente, a fila de espera do serviço é pequena e, em média, são realizados 20 atendimentos por semana.
Interessados em fazer doações e contribuir com o projeto podem entrar em contato com a docente Aline Úrsula pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Assista à reportagem da UnBTV: