O corredor laranja do Hospital Universitário de Brasília (HUB) dá acesso ao Ambulatório 1, onde acontece, às sextas-feiras, atendimento a pessoas que desejam iniciar a terapia de prevenção do HIV conhecida como Profilaxia Pré-Exposição (PrEP). Foi esse serviço que levou Ayune Soares a procurar a unidade. Logo que chegou ao hospital, ela foi atendida por equipe multiprofissional e realizou o teste de infecção sexualmente transmissível (IST) do vírus HIV, passando em seguida para a consulta médica.
Ayune soube do atendimento pela internet e espera do tratamento uma forma a mais de prevenção. Integrante da população trans, ela fala com propriedade sobre as dificuldades que transexuais encontram para ter acesso ao sistema de saúde. “Os serviços existem, mas ainda há barreiras para acessá-los, muitas vezes pelo medo da estigmatização e do histórico de discriminação que essa população sofre”, declara. Ayune não apenas vive, mas defende a causa, como ativista do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans).
De acordo com o Ministério da Saúde, além dos indivíduos trans, os grupos de maior vulnerabilidade incluem homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e casais sorodiferentes (quando apenas um deles possui o vírus). O Boletim Epidemiológico 2018 da Secretaria de Vigilância em Saúde informa que cerca de 900 mil pessoas têm HIV no país. A cada ano, são registrados 40 mil novos casos.
Em funcionamento há dois meses, o Ambulatório de Prevenção do HIV é mais um serviço prestado pelo HUB, que passa a ser a segunda unidade de saúde pública do Distrito Federal a oferecer a PrEP, até então disponível apenas pelo Hospital Dia da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Ao todo, 70 pessoas já foram atendidas, sendo indicada a profilaxia pré-exposição para 62 deles. Houve, neste período, dois diagnósticos de HIV.
Adotada no país há cerca de um ano, a PrEP já existe em outros países, como Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. A diferença é que o Brasil é um dos poucos a oferecer a terapia por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Desde 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o tratamento oral para pessoas com risco substancial de contrair o HIV. A expectativa do programa brasileiro é oferecer a PrEP para mais de 50 mil pessoas nos próximos cinco anos.
“A estratégia do Ministério da Saúde é identificar todos que estão com a infecção para que possa cortar o ciclo de transmissão e ter um controle mais efetivo da epidemia”, destaca a infectologista do HUB Valéria Paes Lima. “Observamos que apenas as campanhas de uso de preservativo não estão sendo suficientes. A adesão à camisinha está diminuindo, principalmente entre os jovens”, contextualiza.
PREVENÇÃO E CONTROLE – Além do novo tratamento, o ambulatório continua oferecendo preservativos e fazendo a testagem. O HUB já fornecia a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) para casos em que o paciente teve uma exposição de risco, como em episódios de acidente ocupacional, violência ou mesmo relação sexual sem preservativo. “A PEP deve ser tomada no prazo de 72 horas após a exposição, sendo utilizado medicamento por um período de 28 dias”, explica a médica.
No caso da PrEP, trata-se de um comprimido de uso diário, combinado com um antirretroviral. A terapia reduz as chances de o indivíduo adquirir o HIV. “Nosso trabalho é identificar quem são as pessoas que mais precisam, pesando o risco de adquirir o vírus com o benefício da medicação”, pondera.
Quanto aos efeitos colaterais da profilaxia prévia, a infectologista aponta alterações renais e, a longo prazo, a toxicidade óssea. “Um indivíduo com insuficiência renal não poderia fazer uso, assim como alguém que já apresenta um problema ósseo. Nesses casos, investimos em outras formas."
A avaliação médica leva em conta diversos fatores, como número de parceiros, hábito de uso do preservativo e até mesmo impacto do uso de álcool e outras drogas. Valéria Paes frisa que qualquer pessoa pode adquirir o HIV, mas determinadas práticas sexuais apresentam maior risco. “O sexo anal passivo é o mais suscetível à transmissão do vírus, em razão do tempo de contato do esperma”, esclarece. No entanto, ela afirma que também é biologicamente possível a pessoa ativa contrair o vírus em outras situações, inclusive sexo oral.
ACOMPANHAMENTO MULTIPROFISSIONAL – O ambulatório de HIV do HUB integra o trabalho de pelo menos quatro especialidades de saúde: médica, farmacêutica, de enfermagem e psicologia. Na visão da doutora Valéria Paes, o ambiente favorece o desprendimento para lidar com o tema. “Essa conversa com profissionais de saúde é muito importante para a pessoa tirar dúvidas sobre sua sexualidade e segurança das práticas sexuais”, considera.
Com mais de vinte anos de experiência na triagem da infectologia, a enfermeira Ana Tereza Conceição Santos atua no ambulatório desde o início do ano. Para ela, o diferencial do Hospital Universitário de Brasília está no acolhimento. “Essa população sempre foi estigmatizada e não tinha acesso aos serviços de saúde. Aqui, podemos trabalhar de uma forma geral a questão da prevenção dessas infecções”, diz.
O atendimento deve ser previamente agendado e inclui uma dinâmica de grupo antes da testagem ou da consulta médica. “Nesse espaço, trago informações sobre o HIV e outras ISTs. Em seguida, faço um quiz e quem responde certo ganha uma camisinha poética e personalizada”, informa a psicóloga Silvia Furtado de Barros.
O objetivo da discussão coletiva é também explicar como funciona a medicação e a importância do acompanhamento ao longo do uso. Para Silvia, a falta de informação ainda é uma das grandes responsáveis pelo preconceito. “A maioria das dúvidas estão relacionadas aos efeitos colaterais e à questão da transmissão do HIV, especialmente para casais sorodiscordantes”, aponta. O paciente indicado à PrEP necessita voltar após o primeiro mês e depois o atendimento passa a ser trimestral.
INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO SEXUAL – Erizeu Gomes iniciou a terapia quando morava nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, agendou atendimento para continuar fazendo uso do medicamento. “Aqui, muitos dos meus amigos desconhecem o tratamento e mesmo o serviço público de saúde. Mas, lá fora, todos já tomam a medicação”, conta.
Em sua opinião, muitas pessoas sabem sobre a Aids, mas ainda se sujeitam ao risco de contrair o vírus. “Acho que a gente já progrediu bastante em termos de informativos à população, só que é preciso agir lá na base, não só com os adultos. Crianças e adolescentes precisam saber, para já terem o conhecimento quando iniciarem a sexualidade ativa.”
Um fator que contribui negativamente para o aumento da incidência das infecções sexualmente transmissíveis, segundo Erizeu, é o fato de a sexualidade ainda ser considerada um tabu. “Tem muito ainda de achar que é questão de confiança no parceiro, mas isso vai além de confiar. Trata-se de autocuidado e prevenção”, alerta.
Esse também é o entendimento de Ayune Soares. “A mulher cis, hoje, tem muitas formas de prevenção da gravidez: o preservativo, a camisinha feminina, o anticoncepcional. Por que a prevenção ao HIV não pode também ter outras alternativas?”, questiona.
Nas próximas vezes que for ao Ambulatório 1 do HUB, Ayune espera ver mais mulheres trans recorrendo ao cuidado. Ela reforça a importância de pensar na humanização do atendimento como um todo. “Vai além das questões medicamentosas. Tem a ver com zero discriminação, que não marginalize ou culpe o indivíduo por ele ser travesti, transexual, gay ou profissional do sexo. Isso é muito importante para que o público acesse esse serviço."
SERVIÇO
Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao vírus HIV
Endereço do HUB: SGAN, 605, Av. L2 Norte – Brasília (DF).
O agendamento pode ser feito pessoalmente na sala F do corredor amarelo, de segunda a quinta-feira, das 8h às 11h.
O atendimento acontece todas as sextas-feiras, a partir das 13h, no Ambulatório 1, corredor laranja.
Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (61) 2028 5262.