Um caso extremamente raro, uma cirurgia de alto risco e uma ação de solidariedade que mobilizou dezenas de pessoas, recursos, clínicas e hospitais. A separação das gêmeas siamesas do Distrito Federal Lis e Mel, em abril de 2019, entrou para a história pelo resultado bem-sucedido. As duas irmãs, que nasceram unidas pela cabeça, já tiveram alta e vêm sendo acompanhadas desde quando ainda estavam no útero da mãe.
A cirurgia envolveu profissionais de diferentes áreas da saúde. As três principais especialidades que atuaram no procedimento têm médicos formados pela Universidade de Brasília: o neurocirurgião Benício Oton de Lima, o cirurgião plástico Ricardo de Lauro Machado Homem e o anestesista Luciano Alves Fares. Além disso, outros egressos também participaram da equipe: os cirurgiões plásticos Adilson Alves da Silva e José Adorno, graduados em Medicina pela Universidade, e a anestesista Márcia Santana Morel, que fez residência no Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Benício Oton graduou-se em Medicina em 1974 e também fez mestrado e doutorado na instituição, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. “Na minha época, a formação era mais voltada para médico generalista e o interesse pela neurocirurgia surgiu no final da graduação. Da minha turma, apenas um outro aluno também se especializou na área”, recorda.
Formado em Medicina em 1997, Ricardo de Lauro também cursou por cinco semestres Artes Visuais na UnB, quase 15 anos depois de sua graduação e atuação como médico. O interesse por pintura e desenho como hobbies foi a motivação para ingressar no segundo curso: “Não pensava em mestrado e doutorado, queria fazer algo diferente do meu trabalho, por interesse pessoal, mas tive que interromper por incompatibilidade com horários de trabalho”.
A descoberta da vocação de Luciano Fares surgiu durante a residência médica no Hospital Universitário (HUB), quando teve contato com o centro de treinamento da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. “Na época havia uma grande demanda de cirurgia pediátrica e assim aprendi muitas técnicas. Isso despertou minha grande paixão: a anestesia em crianças”, conta.
REDE SOLIDÁRIA – Ao ser detectada a má-formação dos fetos, a interrupção da gestação chegou a ser cogitada. Mas quando o médico Benício Oton foi chamado para uma avaliação mais precisa, afirmou, com base em conhecimento teórico e no estudo de outros casos, que seria possível prosseguir.
Como a incidência de gêmeos siameses unidos pelo crânio é muito rara – um a cada 2,5 milhões de nascimentos em todo o mundo –, não ocorreram muitos procedimentos como esse no país. Isso facilitou a liberdade de escolher o Hospital da Criança de Brasília José Alencar como local de realização da cirurgia.
“Uma operação desse tipo implica um custo muito grande e envolvimento de muitos profissionais também, por isso deveria ser feita em um hospital público", destaca Benício, que na mesma época, acompanhou de perto outro caso de separação de siamesas no país, em Ribeirão Preto.
Desde então, o neurocirurgião passou a coordenar os trabalhos e começou a programação, buscando apoio nas redes pública e privada para a realização de exames, preparação dos procedimentos e convocação dos profissionais que iriam atuar na equipe médica. “Existe o envolvimento de abraçar a causa. O trabalho que eu tive foi de pedir, uma vez só. As pessoas faziam de boa vontade e doação. Foi fantástico”, relembra.
Para que tudo saísse perfeito, ele utilizou diferentes estratégias: apresentou o caso a um especialista de Nova Iorque que viaja o mundo para acompanhar eventos semelhantes, criou modelos 3D das crianças em resina e realizou ensaios com a equipe, onde foram programadas as etapas, os processos e as possibilidades de ação.
Quando indagado se havia o medo de dar errado, Benício Oton foi direto: “Na verdade, entramos muito focados em fazer dar certo. É como um vestibular para o qual se estuda e na hora é preciso fazer o que se preparou”.
A CIRURGIA – Com duração de 20 horas, a separação das gêmeas siamesas envolveu, além da neurocirurgia, da cirurgia plástica e da anestesiologia, outras especialidades médicas, como cirurgia torácica, vascular, pediátrica, radiologia, entre outras. “Essa é uma operação que ninguém faz sozinho. À neurocirurgia cabe uma coordenação, mas todos têm um papel fundamental”, reconhece Oton.
A visão é compartilhada pelo cirurgião plástico Ricardo de Lauro, que definiu a sua equipe como “uma orquestra de quatro cabeças e oito mãos”. Para ele, foi um desafio, pois era preciso pensar tridimensionalmente. Para isso, comprou até uma bola de isopor e realizou uma série de testes com uso de desenhos, bonecas e modelos impressos em resina.
Na avaliação de Benício, o sucesso foi praticamente total, pois não houve intercorrências durante a operação e nem problemas graves para as meninas após a separação. “Uma sorte que tivemos é que as crianças não tinham problemas de formação renal ou cardíacas, nem compartilhavam estruturas venosas importantes, como artérias”, aponta.
Um recurso considerado inovador nesse tipo de cirurgia foi a realização da drenagem lombar antes da operação. Isso porque havia grande risco de meningite. A drenagem antes do procedimento agiu como prevenção a um possível quadro de vazamento de líquido, que poderia causar infecção.
Além disso, para conseguir fechar a pele, foram utilizados expansores de silicone entre crânio e couro cabeludo, meses antes da cirurgia. Isso só foi possível ser feito quando as meninas estavam um pouco maiores.
Outra novidade foi a instalação de uma câmera que transmitia as imagens para a sala ao lado do centro cirúrgico, onde toda a equipe podia acompanhar o procedimento e saber exatamente quando deveria atuar. “Era uma população muito grande de médicos e paramédicos, não era preciso que todos ficassem o tempo todo na sala de cirurgia. Também fixamos cronograma com os horários na parede, para acompanhamento do processo”, detalha o neurocirurgião.
CARREIRA – Para Benício Oton, a medicina exige muita dedicação, a qual vem de modo natural. “No princípio, a neurocirurgia tinha uma mortalidade muito grande e possibilidade de sequelas. Há muito risco envolvido, é preciso se dedicar muito, aprender a não se envolver demais com o sofrimento dos pacientes, valorizar as coisas boas e as conquistas”, enumera.
Embora tenha atuado por 14 anos em uma faculdade particular, o neurocirurgião, que pesquisou saúde pública na pós-graduação, não pretende seguir carreira acadêmica, mas continuar prestando serviços na assistência. Sobre a repercussão da cirurgia das gêmeas, ele considera importante "para dar visibilidade ao hospital da rede pública, para que tenha mais recursos e investimento".
“A anestesia pediátrica é um ramo bastante desafiador, pois cada faixa etária tem uma especificação, uma necessidade muito grande. Não é como anestesiar um adulto, que tem um padrão, cada idade exige uma competência diferente, sempre tem algo para fazer, algo novo para estudar”, pontua o médico Luciano, que já acumula duas décadas na anestesiologia.
A expectativa agora é compartilhar a experiência bem-sucedida com outros profissionais. “Essa generosidade tem que ser mantida, passada adiante. O conhecimento adquirido pode ajudar outras pessoas. Pretendo publicar esse material que já temos, porque não foi fácil, uma vez que a bibliografia é muito rara e foi preciso construir muita coisa”, ressalta.
Ricardo de Lauro, por sua vez, continua acompanhando as gêmeas e, semanalmente, avalia como está a cicatrização do procedimento cirúrgico. “Novas cirurgias plásticas podem ser necessárias no futuro para melhorar a qualidade das cicatrizes e o resultado estético como um todo”, admite. O cirurgião plástico espera continuar na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte, onde sente-se realizado profissionalmente.