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OPINIÃO

Maria Lúcia Leal e Patrícia Pinheiro

 

Este texto vem alertar a sociedade e a opinião pública sobre os discursos de uma corrente conservadora que vem buscando o apoio das forças sociais e da mídia para desconstruir os direitos fundamentais da criança e do adolescente e da juventude pobre e negra inscritos no artigo 22 da Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, bem como na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, em que o Brasil é um dos signatários.

 

Essas forças conservadoras promovem o retorno da doutrina da proteção irregular (menorista) para controlar, disciplinar e reprimir a mente e os corpos dos filhos da pobreza. Já que a pobreza, consequência inevitável da organização da produção no capitalismo, não pode ser controlada, reprimida ou disciplinada.

 

A solução para resolver os problemas sociais dos jovens é dada por meio da força, da tortura, do isolamento social, do extermínio e de estigmas que marcam para a vida toda a imagem das crianças, adolescentes e jovens como perigosos e uma arma contra a sociedade. E a infância e adolescência pagam a conta de uma estrutura social tão perigosa.

 

O quadro de violações de direitos da criança e do adolescente das classes populares contido no Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011/2020 demonstra que, passados 24 anos da promulgação do ECA, em 1990, as violações de direitos contra este seguimento têm crescido significativamente.

 

Muitos são os tipos de violências recorrentes sofridas por este segmento social. Trata-se da violência doméstica e institucional, violência sexual, situação de rua, o trabalho infantil, a negação do direito à convivência familiar e a morbimortalidade por violência e dependência química, entre outras. Além disso, observa-se o predomínio do álcool e o maior acesso ao crack e outras drogas sintetizadas quimicamente. No caso do crack, fala-se em epidemia, agravada ainda por sua associação à morbimortalidade e também pela insuficiente rede de atendimento.

 

Grande parte dos adolescentes que foram a óbito já passaram pelas medidas socioeducativas: internação, semiliberdade ou liberdade assistida. As unidades de atendimento das medidas de internação ainda carregam marcas acentuadas de vigência do “modelo FEBEM”, tais como a superlotação das unidades de internação, que operam em condições insalubres, as práticas punitivas e até de torturas dos agentes, o descumprimento dos prazos na internação provisória e até o acautelamento irregular em cadeias públicas.

 

De acordo com o relatório de Tendências Mundiais de Emprego/2014, existem 74,4 milhões de pessoas no mundo, abaixo de 25 anos, sem emprego. Este número representa uma taxa de 13,1% a mais do que o dobro do desemprego geral, que é de 6%. Esse relatório afirma, ainda, que o Brasil possui alto índice de jovens entre 15 e 29 anos (18,4%) que não estudam ou fazem cursos profissionalizantes e estão desempregados.

 

O levantamento apresentado pelo Disque Denúncia Nacional sobre distribuição das denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes indica que são predominantes os casos de abuso sexual, seguidos da exploração sexual, pornografia e tráfico de pessoas. A faixa etária de 7 a 14 anos, meninas e negras são a maioria das vítimas, o que demonstra um claro viés racial da violência sexual e de gênero.

 

Vale ressaltar, ainda, o baixo acesso de crianças e adolescentes às políticas sociais públicas, o que demonstra o perfil (des)protetor do Estado em relação a garantia e defesa dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, conforme regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal.

 

A desigualdade social no Brasil promove um nível de pobreza inaceitável para padrões civilizatórios. Pobreza que provoca a morte por fome, mas que antes disso relega à própria sorte crianças e adolescentes expondo-os a uma situação de vulnerabilidade e risco social que só uma sociedade tão perigosa poderia fazê-lo.

 

Vários estudos sobre as políticas sociais no Brasil têm afirmado repetidas vezes que historicamente as políticas públicas têm se apresentado de forma casuística, fragmentada, sem operacionalidade ou racionalidade, inclusive superpondo-se umas às outras e sem reconhecerem direitos. Em outras palavras, reflete-se em ações que reforçam a desigualdade social que ocorre na sociedade brasileira.

 

Considerando-se, porém, o antagonismo da própria organização capitalista, observamos que as políticas sociais governamentais se traduzem num movimento que assume variadas direções em consequência do confronto de interesses contraditórios e dos mecanismos de enfrentamento da questão social, resultantes do agravamento da crise socioeconômica, da concentração de renda que promovem as desigualdades sociais e a agudização da pauperização da população.

 

A centralidade e a importância que o tema das políticas sociais e, em particular, o da política de proteção à infância e juventude, vem ocupando no cenário brasileiro tem ocorrido pela necessidade mesma de reestruturação do Estado e da pressão que os setores organizados da sociedade civil vêm exercendo junto aos governos, isto é, está intimamente ligado ao movimento mais amplo da sociedade. Somem-se a isso as exigências das agências internacionais de financiamento do capital que estipulam padrões mínimos de desenvolvimento.

 

Quando crianças e adolescentes transformam-se em marionetes nas mãos da máfia do tráfico de drogas, de armas, de pessoas para fins de exploração sexual, de órgãos, adoção ilegal e trabalho escravo, sendo utilizadas como bucha de canhão para matar, roubar e traficar, ao invés de pautarem-se medidas que as protejam, segue-se o caminho mais fácil: o de criminalizá-las. É mais fácil exterminar e trancafiar crianças e adolescentes em um sistema prisional provado falido do que enfrentar grupos com forte poder econômico, patrocinadores de orgias financeiras que bancam candidaturas e bancadas parlamentares.

 

Diminuindo a maioridade penal, o sistema penal certamente coletará mais cedo pobres, negros e algum desavisado. Por outro lado, a máfia do crime seduzirá mais cedo pobres, negros e algum desavisado, em um círculo vicioso que nos fará pensar na diminuição cada vez maior da idade para trancafiarmos nossas crianças e adolescentes, pois se sabe que desde os cinco anos já são aliciados para atividades criminosas.

 

Desta forma, qualquer mudança no ECA reflete na Carta Constitucional de 1988, e exige uma profunda consulta nacional junto aos adolescentes e jovens que participaram e ainda participam desta luta, conforme assegura o ECA/90: garante ao cidadão criança e adolescente o direito de se expressar e opinar, bem como de participar diretamente das decisões importantes de sua comunidade, cidade, estado e país. Esse direito está em consonância com o documento Um mundo para as crianças (ONU, 2002).

 

É inaceitável que uma inexpressiva parcela de políticos e outros agentes institucionais venham querer reverter e anular o ECA.

 

Construir uma cultura de direitos humanos para a criança, o adolescente e o jovem brasileiro exige um esforço permanente, uma vez que não pode ser derivado de nenhuma condição inata ou da inércia das instituições. (Galllardo/2014).

 

Nesse sentido, chamamos a atenção para a necessidade de sermos extremamente críticos à resposta fácil que o Estado burguês e as forças reacionárias de ontem e de hoje sustentam como forma de enfrentar a problemática social. Não podemos perder de vista o fato de que, só com a defesa e aprofundamento do aparato de proteção social e não de criminalização das crianças e adolescentes do país é que poderemos pensar em algum futuro.

 

Maria Lúcia Pinto Leal - professora do Departamento de Serviço Social da UnB, Coordenadora do Grupo de Pesquisa VIOLES/SER/UnB e Coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude-NEIJ/CEAM/UnB

 

Patrícia Pinheiro - professora do Departamento de Serviço Social da UnB, pesquisadora do Grupo de Pesquisa VIOLES/SER/UnB e Vice-Coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude-NEIJ/CEAM/UnB

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