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OPINIÃO

Zélia Leal Adghirni é jornalista e professora do Departamento de Jornalismo, da Faculdade de Comuniação da Universidade de Brasília. Graduada em Biblioteconomia e Comunicação Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Jornalismo pelo Institut Français de Presse Et Des Sciences de L'i, Université Panthéon-Assas, PARIS 2, França, doutora em Jornalismo e Violência pela Université de Grenoble III e pós-doutora em Novas Tecnologias e Jornalismo pela Université de Rennes I. Atua em pesquisas como: Jornalismo e Sociedade, com ênfase nas mutações no jornalismo e as novas tecnologias digitais. Exerceu jornalismo durante cerca de 20 anos, no Brasil, na França e no Marrocos.

Zélia Leal Adghirni

 

Os tiros que abateram cinco jornalistas em plena reunião de pauta na manhã de quarta-feira (7), em Paris, não vão matar o jornalismo. Aliás, esta não é a primeira vez que o jornal hebdomadário francês Charlie Hebdo é atacado. E, mais uma vez, ele vai ressuscitar. A primeira morte foi em 1969. O jornal se chamava Hara Kiri. E de tanto levar processos, de tanto enfrentar tribunais, de tanto ser acusado pelos poderosos de plantão, pelas autoridades francesas, o Hara Kiri foi obrigado a fechar as portas pela censura do Estado. Fiel a sua tradição de jornal (não é uma revista como estão afirmando, é um jornal semanal, em papel jornal, com linguagem de jornal, tiras, caricaturas, charges, crônicas debochadas, onde o riso é rei), Hara Kiri brincou com a morte do general Charles de Gaulle. Nesse mesmo dia, um incêndio numa discoteca matou 146 pessoas em Colombey, cidade do general. Título do jornal: Baile Trágico em Colombey: um morto.

 

Um ano mais tarde, os mesmo jornalistas lançaram Charlie Hebdo (referência a Charlie Brown, personagem das tirinhas americanas de Charles Schulz) com uma nova fórmula editorial, ou seja, priorizando a caricatura e a charge. E, para isso, contrataram nomes entre os melhores profissionais do traço humorístico na França.

 

Liberdade total, nada proibir em termos de manifestações de ideias, o irreverente grupo continuou combatendo toda forma de intolerância, de extremismo, de controle político editorial. Como no Pasquim brasileiro dos anos 1970, a profissão deles era lutar contra tudo que ameaçava a liberdade de expressão. Por isso, muitos dos comentários que li comparavam o fato a uma hipotética possibilidade brasileira da época da ditadura. Seria como assassinar ao mesmo tempo Henfil, Ziraldo, Jaguar e outros de igual gigantismo na arte de perturbar, pelo desenho, os inimigos da liberdade.

 

Charlie Hebdo sobreviveu em meio a crise da imprensa que, em geral, atinge todos os países, sempre enfrentando processos da Igreja, dos ministros, dos políticos, dos partidos, da extrema direita, dos movimentos religiosos extremistas. Judeus, rabinos, Jesus, o Papa, eram tão polemizados quanto muçulmanos e seu Profeta Maomé.
Mas, em 1981, ano em que o socialista François Mitterand foi eleito presidente da França, Charlie Hebdo parou de circular por problemas financeiros. Não foi a censura direta, mas os processos movidos pelas autoridades levaram o jornal a fechar suas portas. O silêncio durou 11 anos. Em 1992, eles voltaram com tudo, trazendo a bordo suas armas de combate mais perigosas: o traço genial dos caricaturistas.

 

Os cinco jornalistas assassinados estavam entre eles: Wolinsky, Charb, Cabu, Tignous e Honoré. Todos com mais de 60 anos, menos Vincent Charbonnier, o diretor de redação, com menos de 50. Todos herdeiros da geração de maio de 1968 que abalou Paris e repercutiu no resto do mundo pela nova forma de protestar: É proibido proibir.

 

O jogo da democracia que se serve das leis para liberar, reprimir e coibir o que parece ir além dos limites nas sociedades ocidentais funciona nas sociedades onde as instituições democráticas funcionam. Poderíamos discutir isso aqui, sabemos o que se passa e por isso discutimos no Brasil, hoje, a regulação da mídia, que não deixa de ser um jogo de poder.

 

Mas calar a voz da imprensa pelas armas não faz parte da democracia. Dizer que o atentado contra o Charlie Hebdo é um ataque contra a extrema esquerda é dizer pouco sobre a complexidade do ato de execução covarde de jornalistas que praticam o gênero jornalismo de opinião. Trata-se, sim, da expressão de linguagem de grupos que não se identificam com os valores da democracia que prega a liberdade de expressão. Sem democracia não há comunicação e sem comunicação não há democracia, ensina Dominique Wolton.

 

Quem são esses três homens que agiram com tanta frieza, que teriam obrigado as vítimas a declinar seus nomes antes de atirar para ter certeza dos alvos, que ainda invocaram a nome de Allah e que gritaram: Matamos Charlie Hebdo. Mas, com certeza, eles não mataram Charlie Hebdo ao matar seus cartunistas, que preferiam morrer de pé a viver ajoelhados. Outros virão para continuar a obra daqueles que morreram em combate pela liberdade de dizer.

 

Em entrevista a um canal francês, o cronista e médico Patrick Pelow, colaborador do Charlie Hebdo, afirmou em lágrimas que CH não vai parar para provar que os jornalistas não morreram em vão. Disse que não tem ódio dos muçulmanos, que o jornal vai continuar lutando pelos valores republicanos e que chamar os assassinos dos colegas de loucos é um insulto aos loucos.

 

Diante do furor dos extremismos, resta a nós, sociedade civil e jornalistas, recusar o jogo dos "loucos". Devemos manter a racionalidade a qualquer preço. Assim como escrevemos Je suis Charlie em telas digitais e cartazes de papel, devemos formar um escudo de proteção contra as reações insanas de outro tipo de extremismo, desta vez, da extrema direita. A mídia já trazia hoje notícias de ataques islamofóbicos contra várias escolas corânicas e mesquitas. Atenção, o momento é grave. Não ao amálgama fácil muçulmanos/terroristas, não à manipulação dos extremismos de qualquer ordem.

 

Assim como o assassinato de John Lennon não assassinou a música, o assassinato bárbaro dos cartunistas franceses não matará a liberdade de expressão.

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