Ana Cláudia Camargo
Quando estava próximo de completar seus quatro anos, Julinho começou a frequentar uma creche perto de sua casa. O começo foi de difícil adaptação para os adultos da família. Acostumados a cuidar intensamente de Julinho, nascido com a síndrome congênita do vírus zika, sentiam-se tensos com a mudança de rotina da criança, habituada com o circuito hospital-reabilitação-casa-vizinhança. Eram muitas as coisas a considerar: como seria sua adaptação longe da família, os horários dos remédios, os cuidados a serem tomados caso tivesse uma crise convulsiva, como se daria seu relacionamento com outras crianças. Gabriela, a mãe, inicialmente ficava aflita com todos esses pensamentos, como nos contou. Achava que Julinho ia chorar muito, tinha medo de a criança não se adaptar e sentir saudade da família. Preocupava-se, mas tentava não transparecer o sentimento para o filho, “Ele é muito sensitivo. Tudo que eu tô sentindo ele sente também. Se eu tô estressada, triste, se eu tô brigando, tudo ele sente e fica estressado também.”
Felizmente, passadas as dificuldades dos primeiros dias na creche, a adaptação de Julinho foi muito mais tranquila do que Gabriela e sua mãe, dona Lúcia, esperavam. Ele vinha surpreendendo a todos com sua amabilidade e boa integração no ambiente escolar. Gabriela, que tanto se preocupava com a possibilidade de Julinho chorar e sentir falta da companhia da mãe e da avó, suas principais cuidadoras, ouviu de uma professora, referindo-se à boa adaptação da criança, de forma jocosa: “Ele não está nem aí para você!”
Na escola, Julinho também era encorajado a provar coisas novas e redescobrir seus limites, como aconteceu com o frango com macaxeira que foi servido no almoço. Gabriela nos contou que esse era um prato que seu filho não comia de modo algum em casa. Dona Lúcia queria, inclusive, ligar para a escola e avisar antecipadamente que se tratava de uma restrição de Julinho, mas Gabriela interveio: “Eu não disse foi nada. Criança tem mania de desmentir a gente. Vai que ele come, depois eu que vou sair de mentirosa”, contou risonha. Percebeu que foi uma decisão acertada, já que Julinho agora considerava frango com macaxeira sua nova comida favorita. Outra importância da creche para o desenvolvimento de Julinho foi a convivência com outras crianças, como nos contou uma de suas terapeutas. Segundo ela, a socialização das crianças naquele espaço fazia com que aprendessem entre si, uma com a outra. A creche era um espaço onde Julinho via outras crianças brincando, conversando, comendo, andando, e isso fazia com que ele se sentisse estimulado a imitá-las. Dessa maneira, o processo de aprendizagem se tornava menos solitário, excedia os momentos das repetitivas terapias reabilitadoras e partia do interesse da própria criança. Refletindo sobre os processos de Julinho, a terapeuta nos ensinou: “A gente tem que trazer o filho para o nosso mundo, não tentar criar um mundo para ele. Ele precisa interagir com outras pessoas.”
Quando perguntamos sobre a ajuda de dona Lúcia nos cuidados de Julinho, Gabriela respondeu: “Mainha é meus braços e minhas pernas”. A avó era intensamente presente na rotina do neto, morava em uma casa muito próxima e frequentemente acompanhava-o nas terapias, administrava e conhecia as dosagens de seus remédios, preparava suas refeições, fazia parte de toda a rede de cuidados da criança. Gabriela achava, porém, que a avó se preocupava demais ao ligar constantemente para a creche, ao cobrar notícias de Julinho, ao temer que a criança fosse cuidada por terceiros. “Eu é que não vou criá-lo numa bolha!”, explicou. Ela queria que Julinho conhecesse a vida, desbravasse o mundo, fizesse amigos, circulasse por outros colos. Parecia orgulhosa com a independência que o filho vinha ganhando e feliz que estivesse cumprindo com algumas das expectativas para crianças daquela idade, mesmo com deficiência. Todo aquele momento era bastante simbólico, pois demonstrava, ainda, que Julinho poderia contrariar muitos dos diagnósticos malfadados dados por profissionais da saúde. Além de todos esses aspectos mais otimistas para Julinho, Gabriela também estava contente em ter as tardes livres, podendo cuidar de outras tarefas da casa, administrar melhor seu tempo. Afinal, a rotina dessas duas cuidadoras, como é o caso das “mães de micro” no Recife, era intensa e cansativa.
Alguns dias depois, em uma manhã na fila de espera para uma das terapias, encontramos dona Lúcia, com Julinho em seu colo. Era carinhosa, dava muitos beijinhos, fazia carinho em seu cabelo. Sempre muito simpática, conversou conosco, nos contou como estava e, em certo momento, se emocionou. Disse, contando sobre a nova fase de Julinho, que tentava aproveitar cada momento de seu neto. Contou que sempre ficava com pena, e às vezes segurava suas lágrimas, ao ver Julinho entrando na van da prefeitura rumo à creche sem a companhia de uma das duas. “Essas crianças são muito frágeis, sabe. Qualquer coisa, pode adoecer, pode ir. Então, tô trabalhando assim para viver cada dia bem com o Julinho, concentrar aqui no dia de hoje, viver o melhor dia de hoje que eu puder com ele. Nós somos tipo uma lâmpada, mas ele é tipo uma vela. Qualquer ventinho leva a vida dele embora...”. Como seu comentário me emocionou! Enquanto a mãe parecia estar orgulhosa da força da criança, a avó sofria receosa com a sua fragilidade. A um só tempo, Julinho nos dava lições sobre sonhos e futuro e sobre fragilidade, ternura e presente.
Dia desses, lendo um poema, me deparei com uma frase curta que, creio eu, resume esses grandes ensinamentos de Julinho e de tantas outras crianças com a síndrome congênita do vírus zika: “...Não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempos, é a possibilidade de cada dia...” A leveza com que Julinho encarou sua nova rotina, a fácil adaptação no ambiente escolar, o ganho de independência em relação aos cuidados exclusivos da família eram, em si, novas possibilidades e horizontes que se expandiam na vida da criança e daquelas ao seu redor. Com a nova rotina, Julinho provava para todos, inclusive para a ciência, a potência de sua viveza.
Histórias marcantes e intensas como a de Julinho nos foram contadas por jovens mulheres da Grande Recife/PE que estão, no momento, vivendo a maternidade de crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika. Este é um dos textos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa: Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco. O projeto de pesquisa vem acontecendo desde 2016, com visitas semestrais à capital pernambucana, e é coordenado pela professora Soraya Fleischer do Departamento de Antropologia/UnB e conta com o apoio do DAN, FINATEC, Pro-IC e do CNPq.
Essas histórias estão reunidas no blog Microhistórias, criado pelo grupo de pesquisa com o objetivo de manter viva a discussão sobre a epidemia do vírus zika e suas consequências imediatas para crianças, mulheres, famílias e comunidades diretamente afetadas. Essas histórias funcionam também para sensibilizar a população sobre como é cuidar de uma criança com uma síndrome tão complexa e com uma reunião de deficiências graves.
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