OPINIÃO

 

Gabriela Neves Delgado é professora associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB. Pesquisadora coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).

 

 

Renata Queiroz Dutra é professora adjunta de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).

Gabriela Delgado e Renata Dutra 

 

A humanidade enfrentou diversas crises em sua história, associadas às disputas por poder político, por bases político-territoriais, por hegemonia econômica, entre outras causas. As crises tendem a convocar mudanças e ressignificações, situando a impermanência no centro da vida.


É sabido que os processos de crise do capitalismo no século XX provocaram uma reconfiguração paradigmática do Estado e de seu papel garantidor de direitos fundamentais, mediante a articulação do conceito de Estado Social de Direito. Assim ocorreu com a crise de 1929, nos EUA, em que o desastre financeiro dali resultante foi decisivo para o favorecimento de políticas sociais e de reformas econômicas estruturadas na intervenção do Estado na economia. Em dado contexto, foi formatada uma das políticas de intervenção social mais expressivas do período, o New Deal, desenvolvido a partir do referencial teórico de John Maynard Keynes – o denominado Keynesianismo.

Na mesma linha, em meados do século XX, os impactos causados pela segunda grande guerra também reorientaram a política estatal em torno da construção de um projeto de Estado de Bem-Estar Social, capilarizado em quase todos os países do ocidente europeu, à exceção de Espanha e Portugal, que somente ingressaram na fase democrática tempos depois, já na década de 1970, com o término de seus respectivos regimes fascistas.

Esse projeto de Estado Social de Direito basicamente se legitimou como o modelo de Estado predominante na Europa ocidental entre os anos de 1945 até aproximadamente o final da década de 1970, momento em que foi entrecortado pela difusão da política neoliberal com suas referências de restrição aos direitos sociais, de integração de mercados financeiros e de consumo desenfreado, até hoje prevalecentes.

 

Mais uma vez, a circunstância de crise nos ensina. E, nesse momento, ensina justamente a desaprender aquilo que a racionalidade neoliberal nos vinha fazendo naturalizar: as regras de mercado não podem resolver tudo e, se não forem limitadas e controladas pelos mecanismos de regulação estatal, como ensinou Karl Polanyi1, podem conduzir à degradação humana e ao colapso social.

Pierre Dardot e Christian Laval, quando apostam na conceituação do neoliberalismo como uma racionalidade que contamina os mais diversos aspectos das relações sociais e da vida humana, acertam ao perceber que há, sob a hegemonia neoliberal, não apenas um questionamento do papel do Estado, mas também do funcionamento de toda a esfera pública, do trabalho e das relações sociais construídas nos planos individual e coletivo2.

O neoliberalismo traz o esvaziamento do conteúdo político da esfera pública e de decisões pautadas em valores de humanidade, para que, de forma unilateral e autoritária, todas as decisões sejam regidas por um único vetor ideológico: os interesses abstratos do mercado e sua indiferença às formas de desigualdade e de vulnerabilidade presentes na sociedade.

Trata, também, do esvaziamento da regulação do trabalho e da tela pública de proteção social, sobretudo em tempos de intensificada tecnologia digital, em que o trabalhador é equivocadamente compreendido como “homem-empresa”, convocado a garantir os resultados dos seus investimentos, administrar os prejuízos e lucros, assumir riscos e oportunidades, numa linguagem que se distancia intencionalmente dos parâmetros das relações sociais concretas e das referências constitucionalizadas de cidadania plena e de proteção ao trabalho em condições de dignidade.

O neoliberalismo, assim, se perfaz como ideário que exacerba o individualismo, desfazendo, lentamente, os laços de solidariedade capazes de assegurar coesão ao tecido social em sua teia de relações construídas por heterogêneas realidades.

Foi esse o discurso que decretou a desconstrução do Estado Social, instituindo reformas desarticuladoras de seus mais importantes instrumentos jurídico-institucionais, caracterizadas por uma desatenção às questões sociais. Os exemplos são variados e presentes em escala global, destacando-se, no caso brasileiro, o inusitado engessamento, por emenda constitucional, por 20 anos, dos gastos do Estado, seguido das precarizantes reformas trabalhista e da previdência social, além de diversos outros diplomas normativos, também de caráter flexibilizatório, que as sucederam.

Desde meados da década de 1970 até a atualidade, a política neoliberal atingiu não só países desenvolvidos, mas principalmente países emergentes ou periféricos, que mantêm suas economias dependentes e posicionadas a reboque das grandes economias do globo. Nos países periféricos, a política neoliberal teve maior penetração, apresentando-se mais agressiva, porque, neles, a construção de uma práxis de cidadania democrática e de democracia política era em sua maior parte incipiente, com projetos ainda não inteiramente consolidados de promoção de direitos humanos, de desenvolvimento social e de proteção ambiental e cultural.

 

O que se assistiu, então, foi um processo de estupefação coletiva diante da percepção da intensa dependência da sociedade em relação a uma estrutura estatal tão frágil. Diante do coronavírus, as leis de mercado, por não compartilharem projetos comuns de humanidade, tentaram fazer crer que o cuidado e a proteção são estritamente individuais: cada um que cuide de si e dos seus, na estrutura de sua vida privada. Como se o sentido de preservação e a sensação de paz estivessem apenas dentro de nossas casas (ou dentro de nós mesmos), numa perspectiva estritamente individualista. Esta seria a saída considerada possível. Aliás, a lógica individualista neoliberal corrobora esse pensamento ao se afigurar como treino para que o ser humano não desenvolva seu papel e consciência sociais, para que o outro continue sendo um estranho invisibilizado, preservada a distância de segurança.

Contraditoriamente, o isolamento social é a solução científica apontada para a contenção do vírus, como orienta a Organização Mundial de Saúde – OMS, mas só pode funcionar se essa for uma estratégia encampada de modo coletivo e igualmente por sujeitos em diferentes situações de risco. Esse caminho, ademais, se apresenta como de difícil operacionalização para pessoas inseridas em relações de trabalho precárias, informais e vulneráveis, que vivem em péssimas condições de moradia e desprovidos de saneamento básico e para quem o isolamento social não se afigura como alternativa, diante da demanda por garantia de subsistência.

É exatamente nessa circunstância de crise, impermanência, assombros e perdas que o Estado Social é convocado a atuar para redefinir os rumos da sociedade, rompendo fronteiras econômicas e sociais até então cristalizadas. Nenhum de nós quer perder os pais, os avós, a respiração ou o salário no fim do mês. E, nesse momento, não há como resolver questões tão intrincadas como essas sem a atuação do Estado. A ação é necessária e também se torna prenúncio de um tempo de virada.

Para fazer frente à grave crise provocada pelo coronavírus, alguns países estruturaram importantes políticas estatais intervencionistas, de variados matizes, dinâmicas complexas e múltiplas variáveis, numa lógica de atuação comunitária e focada na preservação da vida humana. O repertório internacional de medidas de enfrentamento da pandemia é, além de largo, contrário a tudo o que vinha pregando o receituário neoliberal. Agora, acertadamente, se fala em renda mínima para os mais vulneráveis e para os não alcançados pelo Direito do Trabalho; proteção trabalhista para que os empregados não se contaminem, não percam seus empregos e tenham assegurada sua inserção social e previdenciária durante a crise sanitária; saúde pública e universal para que todas e todos – independente de classe social, raça, ou gênero – possam ser prevenidos e cuidados em face da pandemia; gestão pública concertada e capaz de viabilizar, com oferta dos serviços essenciais, o respeito às prescrições de saúde coletiva, como o isolamento; investimento público para manter o funcionamento da economia durante o momento de retração da demanda e, sobretudo, na retomada das atividades, após vencida a crise sanitária.

Esse bem traçado projeto passa pelo pressuposto ético mais repetido no noticiário internacional: primeiro a vida, depois a economia. E o projeto de Estado de Bem-Estar Social, aperfeiçoado pelo modelo de Estado Democrático de Direito, se coloca como o caminho necessário justamente por pressupor que o funcionamento da economia decorre e serve à preservação e à valorização da vida humana, e não o contrário.

Com estrutura pública de suporte aos complexos arranjos sociais diante da crise viral que nos assola, o Estado Social ainda pode operar como vetor para que a renda, o consumo e a proteção social reverberem em crescimento econômico, até que finalmente chegue a bonança.


Assim, a capacidade de reinventar o presente e o futuro, como tempo propício à revitalização dos projetos de vida, à construção de relações sociais menos desiguais e ao cumprimento de expectativas civilizatórias, nos fortalece enquanto todo social unido por vínculos de solidariedade, num conjunto no qual o Estado Social tem um papel que, mais uma vez na história da humanidade, se mostra imprescindível.



1 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

2 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

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Publicado originalmente em Jota em 08/042020

 

 

 

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