OPINIÃO

Shyrley Tatiana Peña Aymara é doutoranda quechua e peruana em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (UnB). Internacionalista e Mestre em Integração Contemporânea na América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Pesquisadora e ativista no Grupo de Pesquisa “O Direito Achado na Rua”.

Shyrley Tatiana Peña Aymara

 

O ano de 2021, na história do Peru, será lembrado como o Ano do Bicentenário, pois se comemoram 200 anos da Proclamação da Independência de 28 de julho de 1821. Essa data tem sido esperada durante vários meses, pois foi marcada pelas eleições presidenciais mais polarizadas na história republicana. Por um lado, a extrema direita com a ex-candidata Keiko Fujimori, e por outro lado, a esquerda conservadora de Pedro Castillo, quem saiu vitorioso da eleição se convertendo no Presidente do Bicentenário.

 

Foi assim que as festas pátrias peruanas aconteceram a partir de 27 de julho desse ano até o domingo, 1º de agosto. Foi uma celebração marcada pela pandemia da covid-19 e alguns eventos programados tiveram que ser suspensos ou adequados com as medidas sanitárias ainda vigentes. Porém, manteve-se as atividades principais em 28 de julho, como o Juramento Oficial do novo Presidente no Congresso Nacional, onde ele deu a sua Primeira Mensagem à Nação tão esperada, em que os povos indígenas, comunidades camponesas, classe trabalhadora e afrodescendentes cobraram protagonismo pela primeira vez na história peruana na fala do Chefe de Estado. Além disso, temas importantes como a mudança climática, a recuperação econômica pós-pandemia, a mudança da constituição atual, compromisso com a saúde e educação, entre outros.

 

Também, no dia 29 de julho, como parte das atividades, desenvolveu-se o Juramento Simbólico do Presidente na Pampa de la Quinua, em Ayacucho. Essa região fica no sul dos Andes peruanos e o lugar escolhido para o evento foi muito marcante, pois foi ali que, com a famosa Batalha de Ayacucho, em 1824, se consolidou a Independência do Peru, e, com ela, os processos independentistas na América do Sul. Foi somente após essa Batalha que a Coroa Espanhola reconheceu as independências das nascentes Estados latino-americanos.

 

Tive a honra de participar desse brilhante e necessário evento depois de ter sido convidada. Uma parte de mim ainda se sente lá pela simbologia e beleza de lugar que é Ayacucho, a sua história milenária das culturas quechua e chanka que ainda está viva, apesar da própria palavra quechua “Ayacucho”, que no português significa “canto dos mortos”. Como vemos, já desde o nome carrega explicações que nos desafiam.

 

O evento conseguiu alcançar entre 30 e 50 mil pessoas aproximadamente, que chegaram de todas as regiões do Peru. Entre elas organizações sociais, populares, de mulheres, indígenas, trabalhadores, rondas camponesas[1], afrodescendentes, crianças, famílias, estudantes, militantes de partidos políticos de esquerda, entre outros grupos sociais. Do mesmo jeito, assistiram convidados especiais internacionais, ou seja, Chefes de Estado como Alberto Fernandez da Argentina, Sebatian Piñera do Chile, Luis Arce da Bolívia e lideranças da região como o boliviano Evo Morales.

 

Ainda posso sentir a alegria na comemoração dessa data simbólica como mulher quechua e peruana e ao ser consciente que o Peru chega a seu Bicentenário com o primeiro governo de esquerda democraticamente eleito. A importância se manifesta em grande medida pela chegada ao poder de um professor rural, sindicalista, camponês e rondero que conseguiu uma identificação da grande maioria dos povos esquecidos na pobreza e miséria na história peruana. Chegou mostrando o símbolo do Partido usando um “lápis” como arma poderosa e de fácil entendimento, pois quem nunca usou um lápis na sua vida?

 

A associação do direito à educação com essa ferramenta trouxe interessantes aproximações ao ponto de que as pessoas mais vulnerabilizadas neste país acreditam que é possível escrever uma nova história com um lápis. Assim como são conscientes de frases como “não mais pobres num país rico”, a qual identifica as necessidades reais pelas quais esses grupos relegados na história continuam confiantes de que o Peru tem que mudar sim ou sim. Por isso, a demanda de uma Nova Constituição para estabelecer um novo pacto social que garanta direitos básicos como saúde e educação. O mais importante, a luta pela dignidade sem desigualdade social.

 

A arte também foi um veiculo de comunicação prestigiado em apresentações culturais durante o evento como o huayno, música em quechua, dançarinos de tesouras, carnavais ayacuchanos, música camponesa, marinera ayacuchana etc. O cenário foi propício para contemplar o sol, as nuvens e o céu azul caraterístico no meio das montanhas que cuidam e protegem como Apus (deuses/deusas) a região de Ayacucho.

 

Finalmente, foi gratificante ter conhecido e me aproximado a mais organizações sociais que hoje, em muito tempo, encontram-se mais organizadas e fortalecidas do que nunca, já que brigaram de perto com a defesa de cada voto diante das falsas acusações por parte de Keiko Fujimori e seu partido político. Além disso, essas eleições causaram cenários adversos como o rápido assenso da ultradireita no país e uma campanha mediática agressiva sobre a esquerda peruana.

 

Diante disso, um homem como Pedro Castilho, que usa um chapéu da sua cultura originária, marca um precedente que leva muitas expectativas de mudança. Porém, a construção de um Peru sem desigualdade, racismo, homofobia e misoginia vai ser um projeto que deverá ser defendido por aqueles que acreditam em mudanças reais com projeção ao futuro. Sabemos que temos que aproveitar esse momento histórico e nos fortalecer com as energias de tantos peruanos patriotas que morreram em Pampa da Quinua por causa de uma pauta poderosíssima: emancipação e não só independência.

 

[1] Refere-se á uma forma de organização social baseada no exercício livre do direito consuetudinário como autoridades jurisdicionais que habitam em comunidades camponesas nos Andes peruanos.

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