OPINIÃO

 

Ana Paula Antunes Martins é doutora em Sociologia (UnB), pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/UnB). Professora colaboradora do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM/UnB) e assessora técnica da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Ana Paula Antunes Martins 

 

"Ana, na próxima década, se ainda estiver bem e com saúde, talvez me atreva a escrever sobre minhas memórias. O fato de ter vivido no Nordeste por 14 anos (1977 a 1992) e destes 5 em Paris (1979 a 1984) me possibilitou registrar muitas histórias e conhecer muitas feministas, acadêmicas tanto daqui como de lá e da América Latina. Um dia sentamos e atualizamos um pouco."

 

Das 101 pessoas que Lourdes Bandeira orientou durante sua vida, fui a última a defender uma tese sob sua supervisão, em 09/03/2018. Poucos dias depois, Lourdes embarcaria para Portugal, onde realizaria seu último pós-doutorado, desta vez na Universidade do Porto.

 

Em nosso período de convivência, equivalente a 8 anos - a contar da primeira disciplina que cursei, ouvi centenas de histórias. A narrativa era uma das maiores habilidades de Lourdes. Muitas vezes escritas à mão, detalhadas, interessantes, as histórias de Lourdes tinham sempre o tom da autoridade de quem não apenas viveu mais, mas de quem se dedicou a fazer registros. No Programa de Pós-Graduação em Sociologia contribuiu com importantes narrativas, dentre as quais vale destacar aquela realizada no Webinário "Os anos 2000: ciência & tecnologia, gênero e cidades”, quando, em outubro de 2020, descreveu com riqueza de detalhes a criação da Linha de Pesquisa “Feminismos, relações de gênero e raça". Nas passagens contadas por Lourdes, o público e o privado iam se misturando, produzindo histórias institucionais em que mulheres, naquele prisma, também são protagonistas. Se não atrizes principais, copartícipes de grandes mudanças. Ela própria esteve ali não apenas como testemunha, mas como quem influenciou os rumos da intelectualidade sociológica e dos estudos feministas.

 

Naquele ano em que esteve no Porto, uma fase certamente mais solitária, talvez não tivesse tantas oportunidades de contar histórias nas salas de aula, cafés e restaurantes. Nem por isso deixou de realizar vigorosas narrativas. Dedicou-se a narrar histórias de feminicídios a partir de textos midiáticos. Professora de Metodologia da Pesquisa, seguia à risca seus próprios ensinamentos, estabelecendo uma relação íntima com suas fontes. Em cima da mesa de sua casa em Vila Nova de Gaia pude ver, durante uma visita em outubro de 2018, centenas de fichas com anotações sobre cada uma das notícias lidas e analisadas. O fez com a mesma diligência com que narrou as memórias institucionais dos lugares onde atuou. E aqui me parece residir o cerne da ética feminista: conferir valor às experiências vividas pelas mulheres, visibilizá-las com o mesmo vigor, seja para denunciar violências, seja para garantir-lhes o protagonismo na vida pública.

 

Lourdes não teve tempo de escrever suas memórias, do jeito como me disse que desejava em março deste ano, mas nós o faremos como uma espécie de compromisso transgeracional. Iremos narrar as memórias de Lourdes Bandeira, esta grande intelectual e ativista que, de história em história, tornou-se uma das maiores defensoras dos direitos das mulheres de nossos tempos.

 

 

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