OPINIÃO

 

Ludmila Gaudad Sardinha Carneiro licenciada em Ciências Sociais e bacharela em Sociologia pela Universidade de Brasília. Mestra pela UnB e doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília em parceria com a Universidad Nacional Autónoma de México. Professora da Secretaria de Educação desde 2007, onde além de ensinar trabalhou como gestora em educação prisional e socioeducação. Feminista, é também vocalista de uma banda de metal exclusivamente feminina, a Estamira.

Ludmila Gaudad

 

“Adorei suas botas”, ela disse. Estava de coturnos em frente ao Departamento quando Lourdes Bandeira me surpreendeu. Sem conhecê-la, sorri e percebi que pela primeira vez haviam reparado em mim para além do que eu escrevia nos trabalhos de fim de semestre. Para alguém de 17 anos que havia estudado toda a vida em um mesmo modesto colégio de freiras, a universidade parecia assustadora e nada acolhedora. Entre dúvidas, dificuldade de estabelecer laços profundos e muita (auto)cobrança, aos poucos construir uma relação afetiva com alguém que tanto me ensinou foi um bálsamo.


Ao longo do meu percurso acadêmico, Lourdes e eu construímos calma e respeitosamente uma relação que foi também de militância e amizade. Fui sua aluna e monitora em diversas disciplinas entre 2002 e 2015, quando finalizei meu doutorado. Durante estes anos, experienciei sua rigorosa orientação, que sempre pretendeu mostrar o quanto eu era capaz, além de seu cuidado amoroso. Isto porque Lourdes era, além de uma excelente pesquisadora, uma dedicada professora e responsável gestora, pois acreditava e exercia como poucos o dever de uma acadêmica que vive o tripé universitário.


Em 2003, iniciei meu trabalho no NEPeM. Por anos a fio passávamos horas no espaço pelo qual Lourdes tanto trabalhou, debatendo, planejando projetos de pesquisa, escrevendo… Foi neste locus de produção científica que entendi na prática o que era o fazer sociológico. Lá decidi estudar mulheres que cometem assassinato e levei o tema para Lourdes, que fez um silêncio misterioso e finalmente respondeu: “Quem estuda isso, menina?! Maravilhoso… Vamos começar.”
Para uma das pesquisas do NEPeM, em 2005 conhecemos o pavilhão “Seguro” da Papuda, ala destinada a homens presos por estupro. Foi tão difícil e doloroso que ao sairmos chorei. Para minha surpresa, Lourdes comentou: “Isto é uma masmorra. Como o Estado legitima um lugar desses?” Senti que o impacto não havia sido só em mim, mas que tínhamos formas distintas de demonstrar.


Em 2006 Lourdes foi convidada, por sua trajetória de luta pela vida das mulheres, para a solenidade de assinatura da Lei Maria da Penha. Presenciei a sucessão de agradecimentos que ela recebeu de militantes, pesquisadoras, gestoras públicas e do então presidente por sua luta para a criação e sancionamento de tão importante lei. No mesmo ano, em uma abordagem arbitrária da polícia militar contra alguns jovens, após minha intervenção fui detida. Não pensei duas vezes, liguei para Lourdes e ao chegar ela sussurrou em meu ouvido: “preste atenção em tudo, vamos escrever um artigo depois”. Hilário, ainda que trágico. A ouvi e a introdução de minha tese começa com este causo. Tese alinhavada a quatro mãos, principalmente pelo incentivo em realizar o sanduíche no México, ideia desmerecida por muitos acadêmicos.


Logo antes do início da pandemia, estivemos juntas pela última vez presencialmente, quando em uma pequena mesa estávamos com minha família em meu noivado. Afinal, foi isso que ela se tornou para mim: família. Sua memória, ensinamentos e força estarão comigo para sempre.

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