OPINIÃO

 

Andrea Barretto Motoyama é Coordenadora do Laboratório de Patologia Molecular do Câncer da Faculdade de Medicina e docente do Departamento de Farmácia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Graduada em Biologia pela UnB, tem doutorado em Bioquímica pela Universidade da Basiléia, Suíça, e pós-doutorados no The Scripps Institute for Medical Research e no The Burnham Insititute (atualmente, The Sandford Burnham Prebys Medical Discovery Institute), ambos em La Jolla, California, EUA. Atualmente, desenvolve projetos que envolvem biópsia líquida em câncer de mama e expressão de biomarcadores em diversos tipos tumorais.

Andrea Barretto Motoyama

 

As últimas décadas presenciaram inúmeros avanços no combate ao câncer, seja ele na fase de diagnóstico, tratamento ou prognóstico. Sem dúvida, o progresso vem sendo construído com auxílio de Genética Molecular, Biologia Celular e Biotecnologia para que seja possível realizar (ainda que em parte) a “Medicina de Precisão”, na qual o tratamento oferecido é individualizado para as características de cada paciente/tumor.

 

Já disponível há 20 anos, o teste de imuno-histoquímica, realizado na peça de biópsia de câncer de mama, permite detectar a presença alterada de determinados receptores (receptor HER2 e receptores hormonais). Tal teste tem valor diagnóstico e prognóstico, já que define não apenas o tipo e o grau de agressividade do tumor, mas também o tratamento medicamentoso adequado a ser adotado. Outros tipos tumorais também se beneficiam, com prognóstico e tratamentos específicos, do conhecimento molecular da alteração ali presente, como no caso de algumas leucemias (presença de alterações cromossômicas, como as translocações t(9;22) e t(4;11)), e câncer de pulmão (com a expressão EGFR, ALK, ROS). Os exemplos são inúmeros.

 

Os medicamentos “alvo-dirigidos”, ou seja, anticorpos monoclonais (“-mabes”) e as pequenas moléculas inibidoras (“-ibes”) em uso em Oncologia, trouxeram considerável ganho clínico e assim cresceram numericamente. Os “mabes” são fármacos altamente seletivos, eficazes e de poucos efeitos adversos. São exemplos: trastuzumabe para câncer de mama, bevacizumabe para vários tipos de tumores avançados e rituximabe para alguns tipos de linfomas e leucemias. São os “mabes” ipilimumabe e nivolumabe que efetuam a imunoterapia, ou, em termos muito simplificados, “mantêm o sistema imune do próprio paciente combatendo o câncer”. O imatinibe, o primeiro “-ibe” aprovado para uso clínico, modificou o curso natural da leucemia mieloide crônica, para a qual a taxa de mortalidade era cerca de 100% há 50 anos ou mais. Com seu surgimento (final da década de 90), mais de 90% dos pacientes tratados sobrevivem décadas sem progressão da doença, ou seja, alcançam a “cura funcional”. Desde então, o conhecimento molecular permitiu o desenvolvimento de uma infinidade de outros “ibes” (erlotinibe, afatinibe, ponatinibe, ribociclibe, etc) para combater com sucesso diversos tipos de tumorais.

 

E, o que se pode esperar para os próximos anos?

 

Novos conceitos embasarão abordagens mais modernas e arrojadas. Se antes a sequência de DNA (nosso “código genético”) parecia ser soberana, hoje se tem que há mais sobre ela do se pensava. Literalmente! A “Epigenética” (“epi-” no sentido de “sobre”), que estuda as modificações que não envolvem troca da sequência de bases no DNA, mas sim, alterações em sua conformação (como acetilação de histonas e metilação de DNA) e que consequentemente, afetam a expressão gênica, tem se mostrado promissora. Fármacos moduladores epigenéticos em uso são inibidores de desacetilação de histonas (as proteínas sobre as quais o DNA “se enovela”), e da metilação de DNA (entenda-se: “interfere com a expressão de genes”), tendo sido aprovados para tipos específicos de linfomas, no primeiro caso, e para algumas leucemias e anemias, no segundo.

 

Outro novo conceito em prática é a “letalidade sintética”, na qual a inibição combinada de duas ou mais vias intracelulares leva à morte das células tumorais. Por exemplo, alguns tumores de ovário estão correlacionados a mutações no gene BRCA1 e BRCA2 de reparo de DNA. Os medicamentos (ex: olaparibe) que inibem outra enzima de reparo de DNA, a poli-adenosina-ribose-polimerase (PARP), ocasionam a morte seletiva de células tumorais que tem BRCA1/2 mutados e que assim ficam sem alternativa de “recuperação” ou de “escape” dos danos ao DNA. Na prática, o uso desses inibidores aumentou o tempo de sobrevida livre de doença de pacientes com câncer de ovário avançado e a possibilidade de uso em outros tipos tumorais tem sido investigada.

 

Por fim, mas de forma não menos importante, tem-se a implementação das diversas técnicas de “Biópsia Líquida”, na qual uma pequena amostra de algum líquido corporal (sangue, urina, saliva, líquor ou sêmen) é utilizada para a detecção da presença de “marcadores” alterados no câncer. Esses marcadores, por sua vez, podem ser células tumorais, DNA livre, exossomos – pequenas vesículas que são secretadas na corrente sanguínea pelas células e que podem que carregar tanto ácidos nucleicos como proteínas, e, até mesmo, pequenas sequências de RNA livre. Como a técnica utiliza, na maioria das vezes, líquidos corporais facilmente acessíveis, torna-se possível acompanhar a resposta do paciente em praticamente todos os estágios de tratamento e no pós-tratamento. Quaisquer mínimas alterações podem ser percebidas no sangue, e assim, evitar a recidiva, antes mesmo que ela se manifeste clinicamente. O uso de DNA na biópsia líquida já está ocorrendo no mundo, porém, devido aos custos, no Brasil está mais restrito à pesquisa, ainda que possa vir a ser implementado em futuro próximo (alguns centros clínicos de forte tradição de pesquisa já o realizam, ainda que não rotineiramente). O uso de células tumorais circulantes (CTCs) mostrou-se mais desafiador, considerando a heterogeneidade intra- e intertumoral/ interpessoal. Porém, para casos específicos (p ex., tumores metastáticos de mama, próstata e colo-retal), uma técnica baseada em CTCs já foi aprovada pela agência regulatória americana FDA para prognóstico. Já o uso de diferentes tipos de RNA se encontra majoritariamente em pesquisa, porém, como no passado, ela poderá levar à descoberta de novas vias alteradas no câncer, que por sua vez podem elucidar novos alvos, e abrir novas perspectivas.

 

Assim, vivemos um momento tanto desafiador quanto belo. Desafiador, porque, além de entender as vias de sinalização celulares, as alterações moleculares do câncer, é preciso inovar com técnicas que sejam viáveis, aplicáveis e custo-efetivas, sobretudo em um País continental e desigual como o nosso. E, para tipos tumorais mais raros, ou mais silenciosos, o desafio apresenta-se ainda maior, pela escassez de amostras e até mesmo de ensaios clínicos robustos. Por outro lado, é encantador ver que mudamos o paradigma de “câncer = sentença de morte” para “câncer, um inimigo passível de ser domado, se suficientemente conhecido”. E, para a geração desse conhecimento é que seguimos trabalhando!

 

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.