OPINIÃO

Gabriel Dorfman é doutor em Arquitetura pela Technische Universität Berlin. Professor associado do Departamento de História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.

Gabriel Dorfman

 

O presente artigo aponta a cidade de Brasília como a mais bem-sucedida e mais importante realização do Modernismo no Brasil.

A comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna se oferece como boa oportunidade para pôr em relevo algo que escapa à grande maioria dos brasileiros, que é o fato de a cidade de Brasília ser provavelmente  a mais importante realização e o mais importante legado cultural do "Modernismo" no Brasil.

Apresentada oficialmente ao mundo no ano 400 e uns quebrados da deglutição do bispo Sardinha, Brasília concretizou duas das (poucas) passagens prosaicas, objetivas e (justamente por serem prosaicas) facilmente inteligíveis daquele que até hoje é unanimemente celebrado como um dos textos seminais da cultura contemporânea brasileira : o "exercício da possibilidade" e a luta contra as "escleroses urbanas".

O projeto de Lucio Costa para a nova capital do Brasil incorporou muitas das possibilidades divisadas pelos sanitaristas, urbanistas e arquitetos europeus, que, às voltas com as "escleroses urbanas" agudas que inviabilizavam a vida nas grandes cidades de seus países, vinham explorando desde a primeira metade do século XIX. Costa, o metabolizador da cultura caraíba (mais do que dos caraíbas propriamente ditos).

Que possibilidades eram essas? Em primeiro lugar, a de estabelecer uma relação harmônica entre cidade e natureza, ou, melhor, entre cidade e não-cidade; para isso, era imprescindível que se desse às cidades uma forma e, principalmente, um tamanho definido e limitado, pois só assim seria possível evitar que elas se expandissem desordenada e indefinidamente, devorando paisagens naturais e rurais, tal como cancros devoram as entranhas dos organismos que os hospedam, até levá-los à destruição final. Em segundo, a de estabelecer as condições para uma vida igualmente harmoniosa dentro dos ambientes urbanos, incorporando a eles porções generosas de espaços abertos e áreas verdes. Nessas duas possibilidades temos elementos essenciais do projeto de Brasília.

Ou seja: seguindo fielmente o preceito antropofágico, o projeto de Costa para a nova capital brasileira resultou da metabolização e do processamento de elementos presentes em escritos, debates e projetos que arquitetos e urbanistas europeus (e estadunidenses) vinham produzindo havia mais de um século.  Do choque entre um projeto de matriz predominantemente europeia e um contexto de implantação muito diferente daquele que havia gerado as ideias contidas no projeto, resultou um objeto singular, suficientemente inesperado e surpreendente para satisfazer a ânsia novidadeira dos profetas do Modernismo, tanto a dos discípulos autóctones quanto a de seus mentores estrangeiros.

Não são os aspectos pertencentes ao campo mais estrito da arquitetura e do urbanismo, no entanto, que fazem de Brasília a obra mais importante e o legado mais duradouro do modernismo no Brasil. É a dimensão cultural presente no âmago do projeto da cidade que faz dela a realização mais importante e mais bem-sucedida da cultura brasileira do século XX. É justamente aí, em sua dimensão cultural, que Brasília vem-se afirmando em seus poucos anos de existência como referência e marco fundamental da história do Brasil.

Em que momento da concepção de Brasília reside a matriz dessa sua predominante dimensão cultural? No momento em que Costa optou por se conduzir mais como um artista do que como um planejador urbano, privilegiando nos traços primários  da nova capital os aspectos estéticos e simbólicos, em detrimento dos aspectos estritamente (e estreitamente) prático-funcionais da nova cidade. Justamente aí, onde reside um dos alvos prediletos que os mais ferozes críticos do projeto de Costa costumam usar para atacá-lo, está a maior virtude do projeto, a fonte de sua força e vitalidade.

 

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