OPINIÃO

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Renato Vasconcellos é doutor em Música e professor do Departamento de Música da UnB.

Renato Vasconcellos

 

É comum ouvir: “eu tentei aprender um instrumento mas desisti porque não tenho o dom”, “essa pessoa herdou da família, o dom musical”, “se eu tivesse jeito, estudaria um instrumento musical”. Quanto de verdade existe nessas afirmações? Será que todas essas pessoas tiveram a mesma oportunidade? Será que se dedicaram com o mesmo afinco? Será que tinham o mesmo prazer ao se empenharem no aprendizado de um instrumento musical? Será que seus instrutores lhes apresentaram pedagogia atraente e eficaz?

 

As respostas a essas indagações revelarão talvez, que há muito mais ciência do que se imagina, no desempenho brilhante de um instrumento musical. O dom, a tendência, a propensão, o talento ou qualquer outra aptidão, supostamente herdada geneticamente, não são garantia de sucesso na empreitada de se tornar um músico. A oportunidade de conviver em um ambiente musical, a exposição à música, boa orientação e acima de tudo, dedicação e disciplina, são ingredientes imprescindíveis na história de cada pessoa que se transformou num(a) musicista.

 

As “famílias musicais” são icônicas na História da Música: os Bach, os Haydn,  os Mozart, os Strauss, os Schumann e mais recentemente no Jazz, os Marsalis, os Heath, os Montgomery, entre tantos outros. Difícil, no entanto, afirmar que o “dom” foi transmitido geneticamente de geração a geração, desconsiderando a influência que a vida em família teve sobre cada indivíduo. Aqueles que nascem em uma família musical terão, com certeza, mais oportunidades de se aproximar de um instrumento ou de sonhar com uma carreira bem sucedida como a de seus familiares mais próximos (pai, mãe, tios ou irmãos).

 

Os exemplos de familiares que se estabeleceram na mesma área de atuação podem ser vistos em diversas outras profissões. Existiria um “dom” da medicina? Um “dom” da advocacia? Teria esse “dom” sido transmitido geneticamente ou a escolha de uma carreira levaria em conta as conveniências e facilidades de um campo de trabalho já  preparado por seus antecessores?

 

O que dizer de pessoas que escolheram a música como profissão e que tiveram sucesso em sua empreitada, mesmo sem ter ancestrais músicos? De onde viria esse “dom”? Em minha experiência como músico e educador, conheci diversas pessoas que foram pioneiras em suas famílias, inaugurando uma geração de músicos. Mesmo sem um referencial familiar, alguns indivíduos se sentem atraídos pela música e buscam formação em academias e escolas, ou mesmo de forma auto-didata. Convenhamos que o fato pode ocorrer em quaisquer outras opções profissionais: comerciantes, mestres de obra, jornalistas e tantas outras.

 

Compartilho aqui, a minha experiência e a de meus irmãos e irmãs. Nós fomos criados em uma família que tinha grande apreço pela música. Meu pai era filho de mestre de banda militar e sua mãe tocava bandolim, como fazia grande parte das moças de sua época. Minha mãe, cujo pai tocava vários instrumentos de forma amadora, estudou acordeom por algum tempo mas não levou adiante a sua formação. Na infância, meu pai que era bancário, estudou piano por dois anos, mas nunca tivemos um piano em casa até 1974, quando nos mudamos para Brasília.

 

O canto e o violão eram nossas principais atividades musicais nos anos 60. Meu irmão mais velho, Eduardo, aprendeu os acordes básicos e ensinou para Ana, que ensinou para Ricardo, que ensinou para Helena, que ensinou para Renato, que ensinou para Cristina, seguindo assim a escala de idades. Em Cabo Frio, onde morávamos, eram escassas as oportunidades para estudar música, por isso praticávamos de ouvido, junto com os discos dos Beatles e da Bossa-Nova. Sempre havia a companhia da música, para uma família de classe média, vivendo em uma pacata cidade praiana.

 

Ressalto aqui um pequeno dado estatístico.   Da prole da qual faço parte, quatro tornaram-se profissionais da música (Ricardo, Helena, Renato e Cristina). Dos seis irmãos e irmãs, quatro se casaram e tiveram filhos (Eduardo, Ana, Ricardo e Renato), mas aqui há um dado estatístico que aponta na direção da minha tese: apenas os filhos dos profissionais de música se tornaram músicos, devido ao incentivo e ao exemplo familiares. Ricardo teve três filhos, André, Pedro e Marco e todos os três tornaram-se músicos profissionais. Renato teve dois filhos e ambos tornaram músicos: Lourenço profissional e Leo Amador.  Eduardo, que não se profissionalizou como músico, teve duas filhas e nenhuma delas aprendeu um instrumento musical. Ana, que também não se profissionalizou como música, teve três filhos e nenhum deles aprendeu a tocar um instrumento.

 

Esses dados, evidentemente necessitam robustez e maior rigor científico, mas nos encorajam a concluir que o ambiente musical é preponderante na formação de um músico. A nível científico vale a pena ler a obra de Oliver Sacks, neurologista britânico que pesquisou o cérebro de diversos músicos e percebeu configurações diferenciadas do cortex, mas sem concluir se eram inatas ou adquiridas através de exercícios e treinamentos musicais.

 

A nível pedagógico sugiro que não nos apressemos em classificar noss@s filh@s e  noss@s alun@s, como detentor@s ou não do “dom da música”. É importante que antes de tudo, propiciemos oportunidades e um ambiente musical estimulante para que crianças de todas as idades vivenciem a música e possam ser atraídas por ela. O contato íntimo com os sons e com os instrumentos musicais poderá nos revelar surpresas e identificar talentosas crianças.

 

A SBPC Cultural merece aplauso por trazer as artes para o meio científico e aproximar assim, o pragmatismo e a inspiração. A ciência deve ser praticada como a arte: criativa, inventiva e consistente. A arte deve ser como a ciência: consciente, coerente e  persistente.

 

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