OPINIÃO

Catarina de Almeida Santos é professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo.

Catarina de Almeida Santos

 

Há exatos dez anos, em um 29 de agosto, era sancionada  a Lei nº 12.711, conhecida com a Lei de Cotas sociais e raciais, depois de séculos de luta do povo negro por ações reparatórias das múltiplas violências da escravidão e do racismo que até hoje vigora. A lei chega 124 anos após o dia 13 de maio, data em que foi sancionada a Lei nº 3.353 de 1888, que declarou extinta a escravidão no Brasil.

 

Estamos em 2022 e, no dia 7 de setembro será comemorado o Bicentenário da Independência do Brasil. Mas é importante pensar a quem serviu a independência, já que o país manteve por 66 anos, mesmo após deixar de ser colônia de Portugal, o sanguinário regime escravagista.

 

A cantora e compositora Bia Ferreira começa a letra da música Cota não é Esmola afirmando que existe muita coisa que não nos contaram na escola. Precisamos falar sobre isso, sobre o que querem esconder e quais as consequências do ocultamento da nossa história.  

 

Abdias do Nascimento nos conta que a invasão portuguesa e a imediata exploração da nova terra, marca o aparecimento da raça negra, que fertilizou o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão. Assim, a estrutura econômica do país existe por força e trabalho da mão de obra forçada do povo negro que foi escravizado, que com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal, ergueu a própria espinha dorsal da colônia. Foi a mão de obra negra e dos povos originários, que plantou, alimentou e colheu a riqueza material que sempre foi usufruída exclusivamente pela aristocracia branca.  

 

O cantor, compositor e ativista Lazzo Matumbi, na música 14 de maio, retrata uma realidade que diz muito sobre a necessidade e justeza das ações afirmativas, para um povo que mesmo tendo produzido as riquezas do país, foi jogado a própria sorte, sem direito a comida, a nome, identidade ou mesmo fotografia, a quem restou o desprezo e a invisibilidade, mesmo todo mundo olhando, mas ninguém querendo ver.  

 

No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

 

Nesse sentido, ações afirmativas é direito, é reparação e não privilégio ou esmola. O privilégio sempre pertenceu as classes dirigentes e seus herdeiros, ou seja, os latifundiários, os comerciantes, os detentores das grandes fortunas, que sempre viveram da exploração da mão de obra de quem trabalha.   

 

A busca pela manutenção dos privilégios se concretiza em ações como a impetração junto ao STF, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186, na qual o então Partido Democratas, questionou a constitucionalidade do sistema de cotas raciais na UnB, justificando que o uso do critério racial no processo seletivo estaria implementando um Estado racializado, como se a raça não fosse a filha do racismo das pessoas brancas que sentem a necessidade de atribuir características inerentes às pessoas negras, como justificativa para humilhá-las, diminuí-las e destruí-las. 

 

Gilberto Gil canta em versos e prosas, na música Nos barracos da cidade a lógica dessa gente hipócrita que não aceita repartir com quem produz, as fortunas construídas às custas das vidas negras, mas que não abrem mão dos lucros abismais, nem de uma pequena parte, com a taxação das grandes fortunas.  

 

Essa gente que não se constrange em se autodeclarar preta e parda para manter seus privilégios e impedir que o povo preto usufrua minimamente daquilo que produz. Gente que se une para acabar com as ações afirmativas e manter as cotas sem o fator racial. Mas fiquem espertos, pois estamos de olhos abertos. Estamos na luta e não vamos aceitar retrocesso. Parafraseando Lazzo, a nossa alma resiste, o nosso corpo é de luta e nós sabemos o que é bom, e o que é bom também deve ser nosso. A coisa mais certa, tem que ser a coisa mais justa. Nós somos o que somos e estamos lutando para desvelar a nossa história, para construir a nossa escola. Não desistiremos de lutar pelo que é nosso e como diz Bia Ferreira:   

 

Existe muita coisa que não te disseram na escola
Eu disse, cota não é esmola

Chega junto, e venha cá
Você também pode lutar
E aprender a respeitar
Porque o povo preto veio para re vo lu cio nar

 

A gente se encontra na luta!!

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.