OPINIÃO

 

 

Natiele Rosa de Oliveira é professora do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Ouro Preto. Historiadora e autora da tese "Corpos transitórios: a utopia Brasil e o discurso indigenista de Darcy Ribeiro (1968-1997)".

Natiele Rosa de Oliveira

 

É sempre desafiador falar sobre figuras icônicas como Darcy Ribeiro. Autores e pessoas públicas como ele costumam suscitar grandes paixões e, às vezes, mitificações que tem um enorme potencial para interditar possibilidades de leitura e análise de seus escritos e de seus percursos. As múltiplas frentes nas quais esse antropólogo, educador e político se engajou também traz dificuldades para estabelecer um recorte sobre o qual falar. Seja como for, a importância de discutir seu legado é incontestável.

 

Entre o público mais amplo, as reflexões de Darcy Ribeiro sobre a formação histórica do Brasil costumam ser as mais conhecidas, sobretudo aquelas trazidas em um de seus últimos livros, O povo brasileiro. Finalizada em 1995, a obra começou a ser elaborada bem antes, na década de 1950, sendo retomada com mais afinco após o golpe de 1964. Naquele momento, relata o autor, a escrita do livro foi resgatada como tentativa de fornecer uma resposta histórica à pergunta compartilhada por ele com todos aqueles que se sentiam derrotados pela ditadura: “Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia”? Cinquenta e oito anos depois, a questão continua urgente e atual.

 

O subtítulo de O povo brasileiro já anuncia algo do que o autor almejou construir em sua narrativa: um retrato sobre “a formação e o sentido do Brasil”. Ao longo das quase 500 páginas que compõem a obra, Darcy fala de vários aspectos de nossa história, tenta delinear uma definição sobre o que seria o povo brasileiro e busca estabelecer um projeto de futuro para o país.

 

Embora seja o mais conhecido, minha avaliação é de que esse está longe de ser o livro mais interessante do autor. Sobretudo pela reafirmação de um ideal de unidade nacional e de mestiçagem que, até hoje, só serviu como instrumento de manutenção de um projeto colonizador branco e violento. Ainda assim, creio ser possível extrair da obra algumas potencialidades importantes.

 

A primeira delas reside, justamente, em seguir imaginando projetos de futuro. São eles que alimentam o tempo vivido no presente. Dada a gravidade do momento em que vivemos, me arrisco a dizer que precisamos disso mais do que nunca.

 

A segunda consiste em nos apropriarmos, a partir de outro repertório, da questão fundamental colocada pelo autor: o que é o Brasil [e o que pode vir a ser]? Mais do que nas respostas trazidas por Darcy, é na pergunta que está a potência de sua reflexão. E é por meio das perspectivas dos povos indígenas, aos quais Ribeiro dedicou boa parte de seu trabalho antropológico, a propósito, que proponho lançarmos novos olhares sobre esta temática.

 

Assim, convém lembrar que, para muitos grupos indígenas, o Brasil sequer existe. Ou, melhor, existe apenas enquanto continuidade de um projeto civilizatório ao qual, muito mais do que pertencer, foi preciso resistir. Isto faz com que, sob a ótica de muitos desses povos, as nossas narrativas de construção nacional soem muito mais como discursos de dominação e desenraizamento do que de identidade.

 

Atualizar os sentidos desta questão à luz da perspectiva desses povos extranacionais parece-me, portanto, uma forma frutífera e interessante de fazer jus ao legado das reflexões colocadas por Darcy Ribeiro. Não para buscar integrá-los ou assimilá-los a um projeto de nação que nunca os representou, mas para questionar o caráter mesmo de nosso Estado. Procedimento este que só pode ser feito invertendo o polo a partir do qual se coloca a questão sobre o sentido do Brasil, o que implica na busca por um diálogo genuíno com outros saberes e cosmovisões.

 

Ailton Krenak nos diz que uma das formas de adiar o fim do mundo consiste em fortalecer nossas poéticas da existência e imaginar outros mundos possíveis, que comportem outros modos de estar na vida. Olhar para o Brasil a partir deste viés pode ser um caminho promissor para tecer novos projetos de futuro que não impliquem na sistemática destruição de nós mesmos.

 

 

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