OPINIÃO

 

Carolina Arouca G. de Brito é doutora em História das Ciências e da Saúde pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde defendeu a tese: Antropologia de um jovem disciplinado: a trajetória de Darcy Ribeiro no Serviço de Proteção aos Índios (1947-1956).

Carolina Arouca G. de Brito

 

Em 2022, ano em que comemoraria 100 anos de vida, Darcy Ribeiro tem sido lembrado por seus “fazimentos” nas diversas áreas do conhecimento em que atuou ao longo de sua trajetória. Desde as primeiras pesquisas etnológicas realizadas no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), passando pelos debates sobre a educação no país, a criação de Universidades e sua atuação política nos níveis federal e estadual, Darcy deixou um legado que, em perspectiva histórica, nos inspira e nos intriga até hoje.

 

O jovem que deixou o curso de Medicina em Montes Claros para estudar Ciências Sociais em São Paulo, formou-se na Escola Livre de Sociologia de São Paulo (ELSP) e logo seguiu carreira no SPI. Como etnólogo recém-chegado, realizou inúmeras viagens de campo, visitou aldeias indígenas no Mato Grosso, Maranhão, Santa Catarina, Goiás e outros estados do país. Passou mais tempo entre os Urubu-Kaapor do Maranhão (1949 e 1951), e sobre esse período deixou um longo diário de campo publicado muitas décadas depois em 1996. Nesses registros e nas muitas correspondências trocadas, sobretudo com seu mestre Herbert Baldus, etnólogo alemão que o orientou na ELSP, Darcy expressou suas preocupações com a saúde indígena naquele contexto1.

 

A epidemia de sarampo fez vítimas pelo caminho, como ele mesmo afirmou em relatório ao SPI: “Os efeitos da epidemia de sarampo [...] foram terríveis. [...] avaliamos o número de índios Urubu mortos em 150, ou seja, mais de 20% da população” [....]” (Relatório ao SPI, 1950, sobre os Urubu-Kaapor). Nesses registros Darcy Ribeiro dizia ainda que, em muitas aldeias deixava a pesquisa etnológica em segundo plano e se fazia “enfermeiro”, buscando ajudar aos indígenas acometidos pela doença.

 

Essas e outras notas de campo, bem como uma grande pesquisa documental, realizada nos arquivos do SPI, por ocasião da elaboração de um estudo para a UNESCO entre os anos de 1951 e 1952, formaram a base para o argumento de Darcy Ribeiro sobre a saúde dos povos indígenas no Brasil. Anos mais tarde publicou pela primeira vez o artigo “Convívio e contaminação”, onde descrevia as principais carências sanitárias entre os indígenas, a urgência em se estruturar uma dinâmica de atendimentos aos indígenas aldeados e as principais consequências socioculturais da mortalidade indígena, ocasionada pelas doenças. Darcy Ribeiro articulava que as doenças / epidemias geravam, entre outras complicações, uma grande desestruturação social, provocada pelo alto índice de mortalidade nas aldeias, o agravamento das carências nutricionais, posto que as atividades de produção de alimentos eram interrompidas pela doença e o aumento da orfandade.

 

O tempo passou e o debate em torno da saúde indígena avançou. A partir da articulação entre academia, sociedade civil, organismos nacionais e internacionais e debates públicos sobre o tema foi promulgada a “Lei Arouca”, em 1999, que instituiu o Subsistema de Saúde Indígena, diretamente vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), que rege ainda hoje a questão no país.

 

Vivemos há pouco mais de dois anos a fase crítica da pandemia de Covid-19, que acometeu severamente as populações indígenas do país2. O que trouxe à tona estudos históricos sobre a saúde dos povos indígenas, entre eles as análises de Darcy Ribeiro.

 

A abordagem de Darcy Ribeiro na década de 1950 refletia o cenário institucional da época (Assistência Sanitária insuficiente do SPI) e refletia a dinâmica social daquele povo indígena no enfrentamento do Sarampo principalmente. Então ao recuperar essa narrativa histórica, em relação à saúde indígena, não se propõe uma linha de comparação direta ou uma resposta pronta para o enfrentamento das epidemias / pandemias contemporâneas, como no caso recente da pandemia de Covid-19, mas entendo que esses registros podem nos ajudar como academia, sociedade civil e Estado a fazermos as perguntas necessárias e urgentes, para avançarmos nesse debate.

 

Essa discussão atravessa o tempo histórico e permanece desafiando o poder público na área da saúde indígena, especialmente diante da emergência sanitária e das múltiplas vulnerabilidades sociais geradas pela crescente violência do campo, do garimpo, ausência de políticas eficazes de demarcação de terras e outras, que seguem comprometendo a saúde integral das populações indígenas brasileiras.

 

1 Desde a criação do SPI, em 1910, a questão da saúde indígena despertava atenção de médicos e antropólogos vinculados e não diretamente vinculados ao órgão. Historicamente, é possível recuar ainda mais no tempo e afirmar que os povos indígenas foram impactados por inúmeras epidemias e doenças infecciosas desde os primeiros contatos ainda no século XVI. Mas foi na década de 1950 que a questão atravessou o caminho de pesquisa de Darcy Ribeiro.
2 Fonte: https://doi.org/10.1590/0102-311X00268220 . Acessado em 22 de outubro de 2022.

 

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