OPINIÃO

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e doutora em Sociologia pela UnB/Universidade de Barcelona.

Berenice Bento

 

Morte aos nordestinos. Analfabetos. Malditos. Cabeças chatas. Mortos de fome. Com indignação sem surpresa, vi o ódio ser vomitado contra nordestinos/as nas redes sociais, logo após o fim do primeiro turno da eleição presidencial. Sem surpresa porque, ao longo de toda a minha vida, escutei os mesmos insultos. Algumas vezes, sem saber que eu mesmo sou paraíba, quem cometia o insulto pedia minha cumplicidade. Sem surpresa porque, em 2014, quando a Dilma venceu as eleições, parte do sul e do sudeste cuspiu o mesmo ódio que agora retorna potencializado.

 

Em algum momento da minha vida, decidi me tornar o que eles diziam: sou paraíba. Assumi o insulto como elemento identitário. Corrigiam-me: você não é paraíba, e sim paraibana. Não, eu sou paraíba. Esse truque na luta política aprendi com os ativismos transviades. Precisamos esvaziar o poder que eles/elas acham que têm em nos produzir medo e vergonha. No lugar da vergonha, o escárnio.

 

Em 2014, eu morava em Nova Iorque. Foi lá que decidi que precisava escrever sobre a minha infância e parte da minha adolescência no Rio de Janeiro e revisitar as humilhações pelas quais fui submetida. Ainda há muito para ser dito, mas é preciso coragem. O título do meu livro de crônicas assume a minha condição paraíba (Estrangeira: uma paraíba em nova Iorque).

 

2022. Novamente sou tragada por lembranças da infância e das eleições de 2014. De um lado, ódio. Do outro, vídeos e textos que citam grandes nomes de artistas, músicos, políticos que são nordestinos. As mensagens terminam, geralmente, com “tenho orgulho de ser nordestino”. Acredito que essa estratégia de responder ao ódio com uma lista de grandes nomes e feitos não chega a arranhar o sólido edifício do ódio contra os “paraíbas” e os “baianos”. Ainda estamos acionando a mesma estratégia do agressor que se fundamenta no determinismo geográfico. Diga-me de onde vens, que te digo quem és, bem no espírito de Euclides da Cunha.

 

Não sabemos exatamente quando a aversão de setores do sudeste e do sul ao nordeste começou. Essa genealogia ainda precisa ser feita. Ao ler os Anais do Congresso Nacional durante os debates que aconteceram em 1871 em torno da Lei do Ventre Livre (lei que definiu que os/as filhos/as das mulheres escravizadas nasceriam livres), as discussões avançavam para uma grande divisão: sul escravagista versus norte abolicionista. Naquele momento, era esse binarismo regional que funcionava. O resultado final da votação na Câmara dos Deputados parecia dar razão à divisão. Votaram a favor da proposta 61 parlamentares e contra 35 (27 do sul/sudeste; 7 do norte e 1 do centro-oeste).

 

Esse selo de norte abolicionista aprofundou-se com o avanço de movimentos abolicionistas e a promulgação de leis locais que libertaram pessoas escravizadas antes da lei geral de 13 de maio de 1888. Em 30 de agosto 1881, um grupo de jangadeiros responsáveis pelo embarque de mercadorias no porto da capital da província do Ceará se recusou a transportar pessoas negras escravizadas que seriam levadas dali para outras províncias. Em 1º de janeiro de 1883, a Vila de Acarape (rebatizada de “Redenção”) alforriou os últimos escravizados. Outras abolições sucederam-se em cidades cearenses (Pacatuba, Itapagé, Aracoiaba, Baturité, Aquiraz, Icó e Maranguape) e em Fortaleza o mesmo se deu em 24 de maio de 1883.

 

Esses fatos históricos contribuem com a narrativa do norte abolicionista e o sul escravagista, principalmente quando o herdeiro político da casa-grande, Bolsonaro, teve uma votação expressiva nessas regiões. Em compartida, também podemos associar a figura do Lula à dos jangadeiros do Ceará. Mas essas representações são enganosas. O que levou, de fato, os deputados nortistas a votarem a favor do projeto da Lei do Ventre Livre foi a escassa presença de pessoas escravizadas em seus estoques ou plantéis (como era nomeada a população negra escravizada).

 

Parte considerável fora vendida para os/as fazendeiros/as sulistas, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, que viviam o apogeu do cultivo do café. E celebrar a libertação das pessoas escravizadas é contribuir com a política de esquecimento. Os/as libertos/as foram abandonados pelo Estado. É como se ali estivesse acontecendo o grande ensaio geral do que viria a acontecer em 13 de maio de 1888 e que se caracterizou pelo abandono absoluto da população escravizada que foi deixada para morrer.

 

Leia a íntegra do texto aqui.

 

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Publicado originalmente na Revista Cult em 18/10/2022.

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