OPINIÃO

Soraya Fleischer é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Co-coordena o Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva (CASCA/UnB) e o Mundaréu, um podcast de divulgação científica em Antropologia (UnB/Unicamp).

Soraya Fleischer

 

Era mais um dia de trabalho de campo no Recife. Naquela manhã quente de uma quarta-feira de setembro, eu estava acompanhada de Isabella Barbosa, graduanda da Universidade de Brasília. Precisávamos sair de um bairro residencial, onde estávamos hospedadas, e chegar a outro, mais central, onde encontraríamos uma professora universitária, nossa entrevistada do dia. Como equipe de Antropologia, temos nos dedicado a pesquisar os pesquisadores do vírus Zika. Uma Antropologia sobre a ciência, portanto.

 

A distância linear não era muito grande, três ou quatro quilômetros, no máximo. Mas, naquela manhã, corria a notícia de uma manifestação de enfermeiras e enfermeiros na porta de um grande hospital recifense. Brigavam pelo seu piso salarial. Esse prédio fora escolhido propositalmente, não só pela importância e visibilidade no cenário hospitalar, mas também pela sua localização à beira de uma das maiores vias que ligava uma ponta a outra da cidade. O trânsito estava bem mais intenso do que o de costume e acabaríamos levando mais tempo do que o planejado até o nosso destino.

 

Dentro do táxi, Isabella e eu aproveitamos para fazer várias tarefas da pesquisa. Uma delas era atualizar o roteiro de perguntas. Inserimos ganchos novos vindos das entrevistas dos dias anteriores e também adaptamos perguntas ao perfil da nossa entrevistada do dia. Outra tarefa era repassar a agenda do restante do dia, quais interlocutoras haviam confirmado, que outras precisavam ter os convites reforçados. E uma tarefa ao longo de todo o trajeto era acompanhar o aplicativo de transporte: vimos as linhas que representavam as ruas passarem do amarelo ao vermelho, percebemos o tempo de chegada aumentando e, assim, mandamos recados à entrevistada sobre nosso atraso.

 

Eu notara o olhar curioso do motorista pelo espelho retrovisor. Acho que ele tentava decifrar o que fazíamos, sobre o que falávamos. A viagem seguia morosa, ele sem o que fazer para fugir do engarrafamento. Chegamos a um viaduto, um semáforo a frente, um mar de veículos impotentes. A um lado, eu vi um grande mural de Chico Science, seus caranguejos, seus tambores de Maracatu. E o motorista começou a resolver a sua curiosidade: “Vocês trabalham com o que?”. Eu expliquei que era professora, que Bella era estudante. “Mas não são daqui, né? É outro sotaque”. De fato, éramos de outra cidade, de Brasília. “E o que vocês estão fazendo no Recife?”. Somos pesquisadoras, eu informei, e é aqui na capital pernambucana onde acontece a pesquisa. Ele se aquietou, continuou olhando pelo retrovisor, agora, além de curioso, um tanto desconfiado.

 

Saímos do viaduto, atravessamos mais uma ponte em direção ao centro. Outro sinal vermelho. Ele dispara, “Mas vocês não estão me pesquisando não, né?”. Levei um susto.

 

Por que ele estaria perguntando aquilo? De fato, eu não tinha descrito o tema de nossa pesquisa, não tinha explicado que entrevistamos cientistas que tentavam entender a epidemia do Zika dos idos de 2015 e 2016. Mas fui acalmando nosso motorista, expliquei o que queríamos conhecer no Recife, contei para onde estávamos indo e com quem conversaríamos naquela manhã, falei da técnica da entrevista, do roteiro, do gravador. Mais do que tudo, eu reforcei que pesquisa não se faz sem o consentimento do interlocutor, sem checar se o tema da pesquisa foi bem compreendido, se a pessoa concorda que sua voz seja gravada, que sua entrevista seja transcrita posteriormente. Ele pareceu se tranquilizar. Dobramos mais uma esquina, lentamente, como todos os carros à nossa volta. Vi o rio por trás do mangue, estávamos próximas do destino. Agradecemos pela corrida, desejamos sorte no restante daquela manhã atravancada e seguimos para a nossa primeira entrevista do dia.

 

Esse diálogo me atravessou. A imaginação deste motorista era inundada por séries televisivas em que acontecia ciência sem espúrios? Ou ele já ouvira sobre pesquisas que haviam transcorrido à revelia dos sujeitos pesquisados? Essa seria uma prática costumeira? Esse diálogo, que se deu dentro de um espaço não imediatamente relacionado ao ambiente científico, que partiu de um indivíduo não necessariamente vindo dos laboratórios, me provocava a pensar sobre o fazer científico, seus cenários, personagens, preocupações. Acima de tudo, me levou a novamente refletir sobre ética em pesquisa e os pactos e combinados mais singelos e iniciais, como o consentimento, a transparência, a devolução. Esse taxista nos lembrava que de ciência todos devemos falar, que ciência pode ser feita em todo lugar.

 

(No Recife, agradeço a companhia da pesquisadora Isabella Barbosa e, em Brasília, agradeço a leitura feita a este texto por Raquel Lustosa, Thais Valim e Julia Garcia).

 

 

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